Os sábios
Um grupo de sábios estudava o que fazer. Dispusera-se em círculo, junto à grade, colhendo o sol em pleno jardim. Parecia extremamente preocupado com a situação, e nem as moscas, especialmente ariscas e impertinentes, pareciam afastá-los da reflexão. Era um momento grave e solene. Havia que decidir.
Um dos sábios escutava atentamente sugestões que lhe eram dadas ao ouvido. Eram dois jovens sábios, ainda algo imaturos nestas matérias, mas o outro apreciava as ideias da juventude, mesmo que raramente as seguisse. Apreciava, sobretudo, que lhe segredassem ao ouvido. Isso e que se calassem quando falava. Gostava de silêncio e de circunspecção quando tomava a palavra, o que geralmente acontecia após diversas consultas e segredos, e jamais sem um tom de voz definitivo e incontestável. Quando se exprimia era o fim da reunião. Nada mais a acrescentar – pelo menos ali, diante de todos, não fosse escapar algum laivo de hesitação ou fragilidade. Quem discordasse, poderia fazê-lo depois, em privado, longe do olhar de terceiros.
Mas por vezes havia quem discordasse em público. Era um sábio não satisfeito com a sua condição. Tinha tanto cabelo, dentes, e porte ancestral como o primeiro: não era justo que a sua voz fosse ouvida com menos atenção. Também gostava que lhe falassem ao ouvido, mas os jovens teimavam em preferir o outro. Punha-se então algo amuado, algo nervoso, tomando uma postura quase hostil em relação ao grupo. Reparava também em quem passava e lançava olhares furibundos se alguém parasse. Não porque desejasse discrição, mas simplesmente porque estava enervado. Era um sábio invejoso.
O sábio principal herdara o estatuto de um sábio mais velho, que ainda comparecia, mas que não abria a boca. Era o único que se incomodava com as moscas. E que não parecia atribuir especial importância àquele momento, ou a qualquer outro, desde que houvesse carne, uma sombra e água fresca para beber. Emprestava sobretudo a antiguidade, o crédito de quem em tempos soubera gerir o monopólio dos segredos. Punha um ar ausente como se já não houvesse sabedoria que o impressionasse. Jovens, adultos, de meia-idade, todos eles lhe podiam contar coisas extraordinárias, as sugestões mais sagazes, que o velho já nem abanava as patas. Limitava-se a mastigar, a protestar com as moscas, e por vezes a adormecer ainda antes das reuniões começarem. No final aprovava qualquer decisão e os outros fingiam importar-se com isso.
Mas se estes três dividiam entre si os principais galões e incumbências, o calor do debate era alimentado por outros dois sábios, um pouco mais jovens, mas já em idade de lhes soprarem a eles ao ouvido. Não pensavam muito nisso por enquanto. Era ainda tempo de prestar provas, de entusiasmar os ouvintes. Esperavam um futuro diáfano, certamente, mas reconheciam ser ainda imberbes diante dos outros. Não obstante, gesticulavam ruidosos e pareciam embrenhados numa questão pessoal. Como se estivessem já a competir pela futura sucessão. Um deles berrava bastante mais, é certo, e conseguia impedir a livre expressão do outro. Mas este optava por levantar os braços, bater com os mãos, fazer granel, o que surtia praticamente o mesmo efeito. No fundo, anulavam-se mutuamente e não se chegava a entender o que pretendiam.
O chefe do grupo observava-os em silêncio. Sempre rodeado de conselheiros, ia inclinando a cabeça para um lado e para o outro. Soltava uns risinhos de vez em quando, como se gozasse com as sugestões. Nada parecia suficientemente sério para que se dignasse a reflectir. Por vezes olhava para o seu mais directo concorrente e abria a boca mostrando-lhe os dentes. Não sorria exactamente, era mais uma provocação ou desafio. O outro percebia a mensagem e franzia a testa, esforçando-se por ignorá-lo. Mas no seu íntimo sabia que iria ser sempre a oposição, e com o passar dos anos uma oposição cada vez mais rancorosa e ineficaz.
A única ameaça ao líder provinha dos dois sábios intermédios, que apesar de bastante toscos, na sua opinião, conseguiam efectivamente cativar pela quantidade de grunhidos e palavrões. Era sobretudo uma aliança entre os dois que ele temia, e por isso esforçava-se por dividi-los, alternando o assentimento às suas intervenções. Numa dada sessão concordava com A, oferecendo um olhar maliciosamente benévolo e mantendo um silêncio trancado com raiva. Sentia vontade de lhe ir à garganta, mas observava B, ainda mais furioso, e deixava que a estratégia seguisse. Contava sempre com o apoio dos mais jovens, que se limitavam a acompanhar o líder nas suas apreciações. Mal entendiam que era B o escolhido, logo se arrastavam para junto dele, abanando a testa com toda a parcimónia e deferência. Isto permitia que A resfolegasse e se torcesse, até uma próxima sessão, onde seria ele o dono de todas as blandícias.
Naquele dia, porém, e uma vez que se impunham decisões sérias e ponderadas, o líder do grupo esqueceu a artimanha e não chegou a concordar com nenhum deles. O que resultou numa situação algo estranha, em que depois de muitas altercações e insultos, os dois sábios acabaram a olhar um para o outro, surpreendidos, sem mais nada a dizer. Puseram-se então a comer nozes, a afastar as moscas, como se estivessem desprovidos de qualquer função. Haviam cessado também os cochichos, com o líder a afastar os pequenos sábios com um gesto rude, e estes a regressarem ao seu lugar encolhidos e temerosos. O sábio mais velho dormitava docemente, com a barriga a inchar e a diminuir numa cadência incerta. Enquanto a oposição se preparava para desdenhar e desobedecer.
Então ergueu-se o líder, pesadamente, sem dizer palavra. Sacudiu as folhas e o saibro, deu uma cambalhota e foi rosnar um pouco junto aos que passavam. Encostou-se bem à grade, voltando-se de costas e encarando os outros. Soprava um vento forte e o pêlo dos sábios eriçava-se. Todos eles aguardavam ansiosamente pela decisão. Que veio em forma de um uivo, bastante assustador mas esclarecido. Pertencia ao líder, e só ao líder, o grande naco de carne que se encontrava no chão. Pertencia ao líder, e só ao líder, o grande ramo de palmeira onde se iria deitar. E pertencia ao líder, e só mesmo ao líder, a única sábia do grupo que jamais participava nas reuniões.
Um dos sábios escutava atentamente sugestões que lhe eram dadas ao ouvido. Eram dois jovens sábios, ainda algo imaturos nestas matérias, mas o outro apreciava as ideias da juventude, mesmo que raramente as seguisse. Apreciava, sobretudo, que lhe segredassem ao ouvido. Isso e que se calassem quando falava. Gostava de silêncio e de circunspecção quando tomava a palavra, o que geralmente acontecia após diversas consultas e segredos, e jamais sem um tom de voz definitivo e incontestável. Quando se exprimia era o fim da reunião. Nada mais a acrescentar – pelo menos ali, diante de todos, não fosse escapar algum laivo de hesitação ou fragilidade. Quem discordasse, poderia fazê-lo depois, em privado, longe do olhar de terceiros.
Mas por vezes havia quem discordasse em público. Era um sábio não satisfeito com a sua condição. Tinha tanto cabelo, dentes, e porte ancestral como o primeiro: não era justo que a sua voz fosse ouvida com menos atenção. Também gostava que lhe falassem ao ouvido, mas os jovens teimavam em preferir o outro. Punha-se então algo amuado, algo nervoso, tomando uma postura quase hostil em relação ao grupo. Reparava também em quem passava e lançava olhares furibundos se alguém parasse. Não porque desejasse discrição, mas simplesmente porque estava enervado. Era um sábio invejoso.
O sábio principal herdara o estatuto de um sábio mais velho, que ainda comparecia, mas que não abria a boca. Era o único que se incomodava com as moscas. E que não parecia atribuir especial importância àquele momento, ou a qualquer outro, desde que houvesse carne, uma sombra e água fresca para beber. Emprestava sobretudo a antiguidade, o crédito de quem em tempos soubera gerir o monopólio dos segredos. Punha um ar ausente como se já não houvesse sabedoria que o impressionasse. Jovens, adultos, de meia-idade, todos eles lhe podiam contar coisas extraordinárias, as sugestões mais sagazes, que o velho já nem abanava as patas. Limitava-se a mastigar, a protestar com as moscas, e por vezes a adormecer ainda antes das reuniões começarem. No final aprovava qualquer decisão e os outros fingiam importar-se com isso.
Mas se estes três dividiam entre si os principais galões e incumbências, o calor do debate era alimentado por outros dois sábios, um pouco mais jovens, mas já em idade de lhes soprarem a eles ao ouvido. Não pensavam muito nisso por enquanto. Era ainda tempo de prestar provas, de entusiasmar os ouvintes. Esperavam um futuro diáfano, certamente, mas reconheciam ser ainda imberbes diante dos outros. Não obstante, gesticulavam ruidosos e pareciam embrenhados numa questão pessoal. Como se estivessem já a competir pela futura sucessão. Um deles berrava bastante mais, é certo, e conseguia impedir a livre expressão do outro. Mas este optava por levantar os braços, bater com os mãos, fazer granel, o que surtia praticamente o mesmo efeito. No fundo, anulavam-se mutuamente e não se chegava a entender o que pretendiam.
O chefe do grupo observava-os em silêncio. Sempre rodeado de conselheiros, ia inclinando a cabeça para um lado e para o outro. Soltava uns risinhos de vez em quando, como se gozasse com as sugestões. Nada parecia suficientemente sério para que se dignasse a reflectir. Por vezes olhava para o seu mais directo concorrente e abria a boca mostrando-lhe os dentes. Não sorria exactamente, era mais uma provocação ou desafio. O outro percebia a mensagem e franzia a testa, esforçando-se por ignorá-lo. Mas no seu íntimo sabia que iria ser sempre a oposição, e com o passar dos anos uma oposição cada vez mais rancorosa e ineficaz.
A única ameaça ao líder provinha dos dois sábios intermédios, que apesar de bastante toscos, na sua opinião, conseguiam efectivamente cativar pela quantidade de grunhidos e palavrões. Era sobretudo uma aliança entre os dois que ele temia, e por isso esforçava-se por dividi-los, alternando o assentimento às suas intervenções. Numa dada sessão concordava com A, oferecendo um olhar maliciosamente benévolo e mantendo um silêncio trancado com raiva. Sentia vontade de lhe ir à garganta, mas observava B, ainda mais furioso, e deixava que a estratégia seguisse. Contava sempre com o apoio dos mais jovens, que se limitavam a acompanhar o líder nas suas apreciações. Mal entendiam que era B o escolhido, logo se arrastavam para junto dele, abanando a testa com toda a parcimónia e deferência. Isto permitia que A resfolegasse e se torcesse, até uma próxima sessão, onde seria ele o dono de todas as blandícias.
Naquele dia, porém, e uma vez que se impunham decisões sérias e ponderadas, o líder do grupo esqueceu a artimanha e não chegou a concordar com nenhum deles. O que resultou numa situação algo estranha, em que depois de muitas altercações e insultos, os dois sábios acabaram a olhar um para o outro, surpreendidos, sem mais nada a dizer. Puseram-se então a comer nozes, a afastar as moscas, como se estivessem desprovidos de qualquer função. Haviam cessado também os cochichos, com o líder a afastar os pequenos sábios com um gesto rude, e estes a regressarem ao seu lugar encolhidos e temerosos. O sábio mais velho dormitava docemente, com a barriga a inchar e a diminuir numa cadência incerta. Enquanto a oposição se preparava para desdenhar e desobedecer.
Então ergueu-se o líder, pesadamente, sem dizer palavra. Sacudiu as folhas e o saibro, deu uma cambalhota e foi rosnar um pouco junto aos que passavam. Encostou-se bem à grade, voltando-se de costas e encarando os outros. Soprava um vento forte e o pêlo dos sábios eriçava-se. Todos eles aguardavam ansiosamente pela decisão. Que veio em forma de um uivo, bastante assustador mas esclarecido. Pertencia ao líder, e só ao líder, o grande naco de carne que se encontrava no chão. Pertencia ao líder, e só ao líder, o grande ramo de palmeira onde se iria deitar. E pertencia ao líder, e só mesmo ao líder, a única sábia do grupo que jamais participava nas reuniões.
1 Comments:
sabes muito, sabes... ó sapichola...
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