O Editor
Natureza morta de Paul Cezzane, aperfeiçoada por João Domingos
Aperfeiçoava os quadros. Analisava-os de perto, reparava que todos eles poderiam estar melhor, mais bem pintados, mais completos. Todos eles. Nenhum o satisfazia inteiramente. Nem aqueles que via em museus, emoldurados a ouro ou a carvalho. Irritavam-no as imperfeições, os estilos, o próprio material usado. Se pudesse comprá-los, alterava-os a todos. Assim, frequentava casas de decoração ou comprava telas a pintores de rua. Chateava-se com aquilo. Chegava a dar conselhos ou a protestar sobre tal pormenor. Eu faria assim, eu faria assado. Os autores olhavam-no algo perplexos, mas contentavam-se em vender o trabalho.
Ele comprava quadros semanalmente. Colocava-os na cave, pendurava-os em fila de espera. Ia aperfeiçoando algum enquanto já mirava outro, detectando qualquer traço espúrio ou falha grosseira. Por vezes não gostava de absolutamente nada. Borrava toda a superfície a uma só cor, e reconstruía, ou não reconstruía, conforme lhe desse. A alguns julgava-os quase perfeitos. Uma linha um pouco mais grossa, um vermelho a menos, a composição alterada... Não lhe davam muito trabalho. Rapidamente diluía uma cor, afastava um motivo, comprimia um detalhe. Nas paisagens retirava algumas árvores ou acrescentava arbustos. Parecia-lhe que eles nunca acertavam nas paisagens. Odiava plátanos, por exemplo. Via um plátano e riscava-o. E cães. Tinha pavor aos cães. Mesmo detestando o cubismo, desintegrava qualquer cão que visse. E os retratos também. Abomináveis! Para quê pintar uma cara, uma só pessoa, destacar rugas ou sobrancelhas? Se pudesse, bania aquela modalidade. E incendiava os retratos que comprava. E vilipendiava quem os fazia. Gostava, por exemplo, dos nus. Comprava pilhas de nus. E cestos de fruta. E naturezas mortas com parede. Eram géneros fáceis de corrigir. Modificava as cores, endireitava os planos, rasurava as sombras. Não gostava de sombras. Nem de luz excessiva. Eliminava personagens obesas, apagava braços torcidos. Gostava de rectidão nos corpos e de nitidez nos campos.
Quando terminava era como se tivesse salvo uma vida ou convertido um incréu. Livrara o mundo de um mal, de uma inépcia, e contemplava a sua obra, aquilatada, despoluída, com uma satisfação imensa, um orgulho ímpar, possuído da mais resfolegante certeza de que cumprira o seu dever como cidadão.
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