O fim dos mapas
Abandonei completamente os manuscritos com o advento do PC. (Costumava escrever na cama, todo torcido, com pouca luz, e mudava de posição quando me vinham os formigueiros). Abandonei completamente essa prática. Agora é cadeira reclinável, de couro, com suporte para os braços e um manípulo que permite ajustar à melhor altura (só falta ser aquecida). E confesso que não sinto saudades do desconforto, mas sinto falta dos rabiscos. Das notas, das emendas, das longas frases cortadas e dos desenhos que fazia na margem do papel (não eram desenhos artísticos, entenda-se, era quando não sabia o que escrever). Agora tudo parece demasiado limpo. Obviamente que há notas na mesma, e rabiscos e correcções e longas frases cortadas; há formas que permanecem assim durante meses: "ele revia cuidadosamente [escrupulosamente] a carta que lhe tinham enviado [que lhe enviaram] de Angola [do País Basco]." Mas não é a mesma coisa, porque todas essas dúvidas e gorduras são depois apagadas. Não sobra rasto. Não se reconstitui o processo de formação de um texto, as suas vicissitudes e interrupções. As suas nuances e os momentos chave. Tudo aparece demasiado limpo, como se não tivesses havido esforço e irritação, como se aquilo não fosse o resultado de uma selecção, por vezes penosa, de elementos a acrescentar ou a extorquir. E para o autor do texto isso era um mapa - afectivo, mas também esclarecedor sobre os erros e as virtudes e a forma como foram olhados naquele momento.
1 Comments:
deixa-me dar a minha experiência com rabiscos jornalísticos: não poucas vezes descobri a lógica de uma investigação (ou a hierarquização de um texto) tendo espalhadas numa ou mais páginas os elementos essenciais, as notas.
como escrivinhador, o advento da democratização do moleskine fez-me voltar à escrita com caneta e papel (por muito que a élite e o JPP se queixem da democratização do moleskine).
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