Revolta em indeferido
Um dos momentos mais confrangedores que vivi foi em 1994, numa viagem a Nova Iorque, no bairro de Little Italy. Havia uma feira, com massas múltiplas a impregnarem o ar com cheiro a temperos e a gordura. Entre os candeeiros esticavam-se largas faixas com a tricolor, e metade do bairro, já na altura, era tomado pelos chineses. Grande imbróglio de tendas e de pessoas; barracas de tiro ao alvo; leilões; escaparates com toda a tralha que se imagine. Vejo subitamente o anúncio: the world’s smallest woman. E com uma curiosidade idiota, saco de um dólar e dirijo-me ao homem que controlava a entrada de uma espécie de casa dos brinquedos. Perguntei-lhe o que se passava. Pediu-me o dólar e disse-me que tinha o tempo que quisesse. Um pouco a medo lá entrei no caixote. De início olhei e não vi nada. Cheirava a palha e a cavalo. Andei uns metros por um tapete e finalmente, pelo canto do olho, vi algo que se mexia. Baixei o rosto e lá estava: the world’s smallest woman. E de que se tratava? Duma pobre enfezada que me olhava como um animal assustado. Nem seria exactamente uma anã. Era um ser raquítico com pequenos braços e pernas, um lenço na cabeça e, sim, posso jurar, amarrada por uma corda a um dos cabos da estrutura. Ainda não tinha lido Um Artista da Fome, do Kafka, mas seria mais ou menos isso. Uma coisa deprimente. Olhei-a de relance e quase pedi desculpa. Saí a correr, envergonhado e enojado. Queria chamar a polícia, armar um escarcéu. Mas acabei por desistir e fui comer um cheesecake…
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