O velho mundo
(No início do ano passei uns dias viciado no Second Life [SL]; e foi pouco antes que tive conhecimento deste “mundo paralelo”, salvo erro, através de uma reportagem do Público. Resolvi investigar, pois parece-me um fenómeno que ainda vai no adro e cujas implicações são vastas e ainda por discernir. Deixo aqui as minhas notas sobre a experiência, que de resto foi breve. E aconselho aqueles que não fazem a menor ideia do que se trata a espreitar primeiro este resumo.)
Há um baque inicial com este mundo gráfico onde se movimentam figurinhas que somos nós. Próximo de uma linguagem de BD, impressionam alguns cenários do grid (o território SL), como esta Amsterdão que se vê na imagem, e onde o meu avatar se encontra numa pausa de reflexão. Apesar da grande instabilidade que ainda existe (constantes crashes e congelamentos), não nego a euforia das primeiras horas – o boneco pode voar, assobiar, fazer manguitos e deslocar-se rapidamente dentro do grid através do teletransporte. Depois, há outros bonecos, personalizados (ou altamente personalizados), que representam milhares de pessoas ligadas em todo o mundo (os últimos dados referem cerca de dois milhões e meio de “residentes”, mas o número multiplica-se diariamente e é enganador, pois cada um pode assumir diversos avatares). Com esses bonecos podemos interagir e praticar o inglês, o que em princípio não distinguiria muito a SL de outros programas de relacionamento como o Messenger ou o mIRC, para lá do evidente upgrade do mecanismo (as conversas, aliás, não divergem muito das do mIRC, e os recém-chegados falam sobretudo sobre o espanto comum perante tudo aquilo). Mas a SL não se esgota no chat, nem ele é, como percebi, a grande preocupação do “jogo”.
Se inicialmente andamos desvairados a experimentar tudo, a mudar o boneco, a arranjar adereços (que podem ser barcos ou gestos específicos), ou a explorar o grid, por entre cidades, clubes, museus, ou pistas de automobolismo; e nos vão dizendo que há mais coisas, como concertos de bandas reais (que utilizam avatares e transmitem em directo a sua música em cenário apropriado; ver na imagem os U2), ou sessões de cinema e de poesia, ou combates de boxe, ou shows de striptease; e vamos sabendo que se ensaiam procedimentos médicos, por exemplo, com a criação de complexos virtuais para testar a resposta a emergências, e se praticam estas simulações com toda a seriedade e profissionalismo; depois de todo o espanto, e também da sensação que apesar de evoluído se trata ainda da versão beta de algo descomunal (pensem em capacetes e sensores) e não muito distante; depois deste espasmo, deste frenesi, desta alucinação, caímos finalmente em terra e começamos a perceber a Second Life – e que afinal, por detrás do aparato, se esconde a mais comezinha das “First Lifes”.
Para compreender isto falemos de Linden Dollars – a moeda corrente na SL. Com uma cotação que oscila mediante as habituais regras da economia e, segundo os últimos dados, se encontra na relação de 1 Linden = 0,31 Doláres, e podendo ser trocado por dinheiro vivo, o Linden Dollar é a mola que faz mexer todo o universo da SL – e que explica a transferência a tempo inteiro de muitos indivíduos para este “mundo novo”.
E como é que se acede a esses Linden Dollars? A resposta é simples: trabalhando. Existem classificados na SL, e os empregos vão desde estar sentado num determinado local (para dar ambiente a um bar, por exemplo) a construir casas ou desenhar roupas para os avatares. Pelo meio há uma infinidade de ocupações, e não surpreenderá ninguém que uma delas seja a prostituição (sim, os bonequinhos fornicam e gemem, muitas vezes em plena Dam Square). Mas esta opção, extremamente popular - há zonas inteiras com meninas e meninos e, tal como as páginas pornográficas estão para a web, também aqui o sexo é omnipresente – , esta opção implica ter já algum dinheiro, pois não é qualquer avatar que se torna “desejável” – e os modelos base (gratuitos) não levam ninguém a gastar um tusto. É preciso investir num boneco sensual.
As grandes fortunas, porém, e há já milionários na SL (que são também milionários no mundo de cá), constroem-se sobretudo pela aquisição de terrenos, que são depois vendidos ou alugados a outros residentes. De notar que estes senhorios, se inicialmente fazem as suas compras aos responsáveis máximos pela SL (a empresa Linden Lab), têm depois autonomia para dispor das suas propriedades e apenas respondem por si nos negócios que fazem. O mais célebre destes landlords chama-se Anshe Chung, que alegadamente factura cerca de cento e cinquenta mil dólares por ano. Outro negócio rentável é o design (de edifícios, roupas, bonecos ou mobiliário), e qualquer um poderá tornar-se arquitecto ou marceneiro no interior da SL. As possibilidades, no fundo, são inesgotáveis, uma vez que as regras são as mesmas do mundo real: se há procura de um serviço, esse serviço vende-se, ou então cria-se um novo serviço e procura-se clientela. O crescimento económico na SL, e a progressiva sofisticação das suas regras, abriram já o debate, nos EUA, sobre a necessidade de se aplicar impostos. Recomendo a leitura deste artigo da Wired, onde se dá conta de uma série de casos de sucesso na SL, de gente que simplesmente trocou o seu emprego no mundo dos átomos pelas oportunidades do universo binário. Há um ex-professor que chega mesmo a prever que os seus filhos, um dia, irão encarar com naturalidade essa opção, e a escolha entre um mundo ou outro irá depender apenas do vencimento.
Linden Dollars é a chave do "jogo". E apesar de na origem da SL (e de programas análogos, como o Active Worlds) se encontrarem laivos de utopia e uma suposta inspiração na literatura cyberpunk – a SL será uma recriação do metaverse, o mundo descrito no livro Snow Crash, de Neal Stephenson -, a verdade é que, ultrapassado o entusiasmo, se percebe bem o pragmatismo que domina a coisa. Os recém-chegados, e os curiosos, podem entreter-se no chat e a fazer piruetas no meio da rua, viajando pelo grid sem grandes propósitos, mas os residentes antigos, os que decidiram "jogar", sabem bem o que fazem e para onde vão. E assumem com escrúpulo a sua personagem. O dono de um bar veste-se como o dono de um bar e comporta-se com distanciamento e altivez. A consultora de moda recria a consultora de moda que viu na televisão e captura-lhe os tiques. O proprietário (que tem o enunciado visível no boneco) anda sempre de fato e com adereços de luxo. A prostituta põe a mão na anca e lança piropos aos transeuntes. Cada um no seu papel, cumprindo com zelo as suas funções. A destoar desta sociedade surgem apenas os furries, avatares com formas de animais ou figuras mitológicas, que representam o elemento de fábula que terá estado na cabeça de alguns precursores. “Mas um tipo não faz negócio com alguém que é um pato ou um tritão”, refere um dos entrevistados no artigo da Wired.
A febre do Linden torna-se visível logo nas primeiras horas, assim como os diferentes estatutos e classes que povoam a SL. Recordo a história que se passou numa das minhas visitas. Dois avatares com a forma de rappers bem sucedidos, estilo Snoop Dogg, com correntes douradas e casacos de pele, testavam os seus bólides à saída de um bar. Ingenuamente, perguntei-lhes para que serviam os carros, uma vez que ali se podia voar ou usar o teletransporte. A resposta foi pronta: “this is a pussy catcher, son." E depois explicaram-me que não era para todos. Aqueles pedaços de pixeis custavam para cima de dois mil Linden. E é assim com tudo. Há os que têm carros de marca (desenhados por alguma celebridade) e há os que vão a armazéns de produtos grátis buscar um carocha. Há os que têm um boneco tosco e os que foram ao solário e são esbeltos. Há os que dormem na rua (eu acordava desgrenhado num beco de Amsterdão) e os que têm ilhas privadas. Há os que são donos disto e daquilo e os que não têm onde cair mortos. E o sucesso, a ascensão, o “jogo”, é incutido desde início nos caloiros, que recebem toda a espécie de convites para se tornarem membros de clubes ou casinos. Ao aceitarem, imediatamente lhes cai um rótulo que torna pública a sua condição. E o resultado é uma multidão de VIP’s que convenientemente publicita uma multidão de marcas. O comportamento dos residentes vai de acordo com o estatuto, e não se espere grande atenção por parte de um senhorio ou de um vendedor. A conversa da treta fica para a ralé.
Ao fim de uns dias nisto, percebe-se a antiguidade deste mundo e imagina-se que o Homem, para onde quer que vá, repetirá tudo o que é e o que já fez. E depois escolhe-se: ou se sucumbe ao tédio ou se começa a "jogar". Eu fartei-me. Prefiro este mundo, que afinal é igual. E depois de apancalhar o grid algumas horas, terminei com grandeur, atropelando com o meu buggy três avatares com a forma de galinhas.
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6 Comments:
digital art?
olhe que assim engana os mais distraídos... vão chover perguntas sobre a sua ida a Amesterdão... como lhes vai responder?
Fiquei surpreendido e intrigado com a tua experiência. E com este texto. Estou tentado a experimentar, apenas para saber se será possível lançar um grupo alternativo ou uma sociedade alternativa netes mundo alternativo. O escriba
Da leitura deste longo e bem escrito post, fico com a sensação que você afinal tem muitas coisas por resolver neste mundo, demasiadas para que um mundo alternativo como o SL consiga cativar pessoas com angústias como as suas... e não considero isso nada negativo.
ainda bem que não considera.
claro que não considero isso negativo... isso põe-no na lista dos "colunáveis" merecedores da vida neste "velho" mundo... e creio até que essa "espécie" está em vias de extinção. Juro que não o estou a chamar de romântico...
Eu tenho uma má impressão do SL. Não sei se originalmente era este o rumo que se lhe queria dar, mas depois de saber (há pouco tempo, confesso) que os políticos faziam campanha no SL, que as grandes empresas também lá estavam, que era tudo possível desde que se pagasse, percebi que não deve ter graça nenhuma. Na verdade, assombrou-me! Parece-me palco de coisas escabrosas, onde se ensaiam cenas maradas e senão perigosas! Também prefiro este mundo. Pelo menos é real e isso não tem preço.
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