Fui à noite que me interessava do Festival Mestiço, que decorre no parque subterrâneo da Casa da Música - iniciativa que se aplaude e que, olhando à adesão de público, terá condições para se impôr no mapa. (Uma objecção, porém: o local é francamente mau. Uma garagem, com as suas características
underground e bafientas, serve determinados projectos, desde o rock agressivo às electrónicas minimais, mas acaba por sepultar este género de música mais cálida, que pede sem dúvida espaços abertos e respiráveis).
Vieram os Ojos de Brujo, catalães que fundem o flamenco e a rumba com as linguagens do momento (já cansam um bocadinho estas fusões; todo o bicho-careta mistura o seu folclore com as linguagens do momento; e ou a coisa vale mais que a soma das partes e se autonomiza [espreitar Lila Downs, por exemplo], ou soa a aproveitamento espúrio que não beneficia nem uma coisa nem outra). Os Ojos de Brujo teimaram na parte menos interessante do seu repertório (o último álbum,
Techari), e só a espaços visitaram
Bari, o disco que muito justamente os celebrizou. Além de um concerto demasiado longo (quase três horas), os Ojos de Brujo têm o hábito irritante de debitar umas causas pelo meio das músicas. Entre uma festarola e outra aludem a Chiapas e às detenções de não sei quem. Eu não sei o que é que realmente pretendem ao comunicar estas coisas aos corpos suados e ululantes: uma sensibilização, uma indução, dizer:
nós preocupamo-nos com isto? Nestas matérias, sempre preferi a atitude punk: "Fuck Chiapas", e já está.
A noite foi ganha com os Tinariwen, que conheci poucos dias antes pela audição de
Amassakoul (disco do ano pela Billboard, em 2004). São antigos guerrilheiros do Mali, que trocaram as
kalashnikovs pelas guitarras e a luta armada pelo blues. Primeiro, o aspecto: apresentam-se como autênticos tuaregues, com os camelos estacionados à porta. Recordam as descrições de Camus sobre os árabes, com "rostos que parecem esculpidos com punhais". Enfaixados até a cabeça, com as suas vestes, dividiam-se entre o grupo da simpatia, que marcava o ritmo com palmas e
flertava com o público; e o grupo dos sisudos, de olhar distante e impenetrável. Foi um aroma absolutamente distinto. Um blues hipnótico, com cheiro a distância e a deserto. Absolutamente lasso, mas de uma lassidão imparável, que nos forçava a dançar ininterruptamente. Diz-se "enleante" sobre tudo, mas se há altura própria é num concerto dos Tinariwen. Sim, estava enleado, a fumar ópio em pleno Sahara.