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domingo, julho 22, 2007


Pedro Granadeiro, Cracóvia, 2005

Com a tremenda irregularidade dos últimos tempos (mas própria do ADN deste blog) torna-se inútil anunciar uma paragem. Em todo o caso é boa oportunidade para esta foto. Vou ali dar uma volta e já venho.

Stocks in gloom are up

"There's a reasonable argument that suggests buffing up Joy Division's harrowing, cathartic howl to suit the palate of a mainstream rock audience is a pretty horrendous thing to do, somewhat akin to remaking Bergman's The Seventh Seal as a Sunday evening comedy-drama starring Amanda Holden, but you can't quarrel with the sales figures. And if stocks in gloom are up, that's good news for Interpol."

Crítica pouco entusiasmada de Alexis Petridis ao novo álbum dos Interpol, "Our Love to Admire", no Guardian.

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sábado, julho 21, 2007

Luz

Há aquele que viu "a luz" e aquele que viu "a falta de luz".
Desconfio dos dois.

sexta-feira, julho 20, 2007



E por falar nisso, onde é que andam os filmes deste senhor?

A nossa vida nos outros

Não sei se por efeito deste Verão marado ou por mera coincidência, a verdade é que tropeço constantemente em problemas amorosos. Estou ao balcão e ouço dizer “tens que ir à luta, pá, isso assim não é nada”. Vejo uma montra e falam de traição e facturas detalhadas de telemóvel. Tento ler qualquer coisa e logo vem “esta noite acabamos tudo”. Não consigo ir a lado nenhum sem passar por lamentos ou ansiedades.

Muitas vezes concentro-me no que estou a fazer e desligo. Mas o facto é que me interessam estas coisas e, podendo, lá vou seguindo o desenrolar das desventuras. A linguagem, por exemplo. Ouço sempre coisas que já disse a alguém ou me disseram a mim. O vocabulário e os conceitos são francamente escassos. Como se tudo se reduzisse a uma dúzia de nó górdios e folhas A4. E ali se plasmasse o essencial das relações. Depois, com sorte, surgem as nuances e particularidades. Que é o aspecto mais gratificante para quem espia.

A vida dos outros, assim captada, traz sempre a promessa de uma revelação, ou de um novo sentido para os problemas de sempre. E há sempre a hipótese de uma ressonância, das palavras ouvidas fazerem eco do nosso percurso, ou nos lembrarem alguém, ou apresentarem uma chave para qualquer coisa. Há sempre a esperança de nos identificarmos com aquilo e, tal como num livro ou num filme, ficamos suspensos até ao desenlace porque queremos saber o que nos acontece.

terça-feira, julho 17, 2007

Natureza morta

segunda-feira, julho 16, 2007

Dia de fumo

O expediente arcaico de levar os militantes de cascos de rolha à capital, em dia de eleições, para encher a cidade de “lisboetas” efusivos com a vitória do candidato, e depois aquele circo, absolutamente inautêntico, com o primeiro-ministro a colar-se à festa, em cima de um camião TIR, e a debitar um chorrilho de inanidades, quando se investiu o melhor exército, os melhores recursos, e o resultado foi o mínimo, apenas revela a aflição de um governo em acentuada queda.

'Dia de sombra'

"O nível de abstenção [62,6%] é escandaloso. O eleitorado lisboeta deu hoje, no que diz respeito à democracia, ao futuro da Polis e ao destino dos seus cidadãos, um vergonhoso sinal de desinteresse e egoísmo. Bem podem alguns chamar-lhe cartão vermelho aos políticos, aos partidos ou ao que for. Não basta. O que explica esta fuga às urnas, num dia sem Sol, é tão somente a falta de civilidade. Depois da capital, segue-se o País. Democracia? Um dia destes, ainda nos arriscamos a acabar todos à sombra de outra coisa qualquer."

No Corta-Fitas.

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sexta-feira, julho 13, 2007

A última palavra

Há aquela coisa dos putos que nos acompanha.

- Tu és estúpido.
- Estúpido és tu.
- Tu é que és.
- Tu.
- Tu.
- Tu.
(ad infinitum)

Ter a última palavra é uma obsessão. Um dever. Uma questão de honra. Como se perdêssemos a razão toda ao levar para casa o “estúpido”. Como se ficássemos diminuídos. Vergados e humilhados pelo mais teimoso. Vemos isso em debates, na televisão ou nos blogues, quando muitas vezes já não interessa o que se diz, apenas manter a face, ser o último a chamar "estúpido". Nas caixas de comentários chega ao paroxismo. Os anónimos são sempre os últimos a dizer “tu”, e podia haver um script, durante mil anos, a emitir a réplica, que na mesma seria derrotado pelo anónimo. Ter a última palavra é o que interessa, mesmo que já ninguém se recorde do que originou o primeiro “estúpido”.

Maturidade e bom senso é também desistir, abdicar do último eco e ir saudavelmente “estúpido” para casa.

quarta-feira, julho 11, 2007

B



Na ressaca do SBSR, que para mim se limitou à última noite e que valeu pelos TV on the Radio (apesar do concerto minúsculo: estes alinhamentos onde querem meter tudo…) e pelos Interpol (que devia ter visto há dois anos, quando estava apanhado pela banda); e da festa no Incógnito, onde acrescentei dois nomes à Escala Warhol, sem ter de me chatear com ninguém: Paul Banks e Tunde Adebimpe (que partilhou o meu desconsolo pela brevidade do espectáculo, dizendo que não chegou a haver tempo de se envolverem); na ressaca de tudo isto fui conhecer o novo B do Centro Cultural de Belém.

Sobre a qualidade da colecção não havia dúvidas. Ali se reúnem os nomes-chave das principais linhas artísticas do século XX, e nalguns casos até obras-chave desses artistas. Da maleta de Duchamp (dos tempos portáteis) à gigantesca pintura-escultura de Frank Stella, passando por núcleos de surrealismo, pop art ou das vanguardas dos anos 1960/70 (que me parecem particularmente bem representadas: Donald Judd, Sol LeWitt, Joseph Kosuth), e com uma presença antológica de portugueses (na imagem acima vê-se Entrada Azul, de Helena Almeida), a colecção reservou-me ainda surpresas, como as figuras inquietantes de Robin Lowe. Hei-de voltar com tempo, porque desta primeira vez reparei sobretudo no museu.

Desconheço a profundidade das alterações relativamente ao antigo Museu do Design, e mesmo se ocupava a totalidade da área agora reservada ao B. Mas num primeiro contacto surpreendeu-me a dimensão e as relações inesperadas que ali se criam: pequenos recantos, quase intimistas, em diálogo com enormes vãos e extensos corredores, num conjunto que parece cansativo de percorrer, mas é mitigado pelas constantes surpresas e diversões. Um regalo, mesmo que não houvesse quadro nenhum. E apesar da tirada de Sócrates, na inauguração, sobre o facto de Portugal estar "finalmente" no mapa da arte contemporânea, revelar apenas ignorância (e onanismo político), a verdade é que estamos perante o espaço expositivo mais impressionante do país. O que para um portuense descomplexado significa apenas uma melhoria na loja de doces mais próxima.

quinta-feira, julho 05, 2007

Felações



A entrevista conjunta de José Sócrates e Lula da Silva, que passou hoje na RTP, fez-me lembrar este debate entre o Primeiro Ministro e o Presidente da República (entretanto já um pouco desactualizado).
Ora substituam lá alguns termos e a figura de Cavaco e digam-me que não foi isto.

O astronauta e o filósofo

Há dias alguém comentava, em tom depreciativo, as bolsas atribuídas a um estudante de filosofia medieval: “Filosofia medieval? Andamos a gastar o nosso dinheiro em filosofia medieval?” Imagino que se fosse em arquitectura de sistemas ou engenharia hidráulica o problema não se punha. São tecnologias, sinais de progresso (ou pelo menos soam a isso). Agora, filosofia medieval? Compreendo o desconsolo, sobretudo num país pobre. Mas também penso que é por ainda existirem estudantes de filosofia medieval que não somos totalmente filisteus.
É por ainda existir quem se interesse por Santo Agostinho ou Abelardo (e possa aprofundar esse interesse através das condições criadas pelas bolsas) que nos podemos ainda considerar vagamente do primeiro mundo. Porque convém recordar que a civilização não é só astronautas. E os países que contam – e sempre contaram – têm os melhores cientistas, mas também os melhores filósofos.

sábado, junho 30, 2007

Limpeza

A "limpeza de balneário" não se aplica só a equipas de futebol e executivos, é também uma operação necessária nas nossas vidas.

segunda-feira, junho 25, 2007

Rise



O vídeo é desinteressante, com o artista anteriormente conhecido como Johnny Rotten a exibir as cenouras que plantou no cabelo e pouco mais. Mas sempre gostei desta música e da sua mensagem – que dedico à minha cidade neste momento difícil.

quinta-feira, junho 14, 2007

O edital

O site da Câmara do Porto continua a sua senda de blog de propaganda. Agora, a propósito da manifestação silenciosa que teve lugar no dia de estreia da peça Jesus Cristo Superstar, de Filipe La Féria, aparece um lacaio a verberar sobre o director-adjunto do Jornal de Notícias, David Pontes, pela sua participação no protesto. A coisa chega ao ponto de ser divulgado um vídeo (aparentemente patrocinado pela Câmara) onde se mostra o jornalista ostentando um dos cartazes simbólicos que foram distribuídos – como se apanhado em "flagrante", em "pleno delito", "com as calças na mão".

Achei curiosos alguns dos comentários ao panfleto: vozes que não me surpreenderia que fossem de outros lacaios do município, chamam a atenção para a falta de equidade do jornal, demonstrada pela presença do director-adjunto na Praça D. João I e pela linha editorial seguida pelo diário. Fala-se em rigor, isenção, objectividade. Noutros países mais civilizados já há muito que é pacífica a liberdade de orientação dos diversos jornais. Nem o Guardian, nem o The Independent, nem o Le Monde, o La Repubblica, o El Pais ou o ABC têm qualquer pejo em expor claramente as suas posições políticas, as suas preferências e aversões, e de organizar a sua agenda em função delas. Ninguém é apanhado desprevenido. Ao comprar o jornal X o cidadão sabe o género de abordagem que encontra e pode perfeitamente preteri-lo pelo jornal Y, caso não se queira enervar. Aqui estamos longe disso.
E continua a acusar-se os jornalistas de "parcialidade" e "falta de rigor" quando não se aborda aquela notícia que procuramos, ou quando o tratamento dado não corresponde aos nossos desejos. Assumisse cada jornal uma tendência clara e teríamos um espaço público verdadeiramente democrárico e plural. Sem subterfúgios e "sugestões", com a bandeirinha certa para cada um.

Mas nem sequer é isso que importa neste episódio. O grave é condenar-se um cidadão (através de um vídeo de denúncia) pelo simples facto de expor a sua opinião. Como se, na qualidade de jornalista (ou director de jornal), tivesse deveres de recato e imparcialidade sobre matérias públicas na sua vida privada. E como se, nos editoriais (que não são notícias, alimárias!, são espaços de opinião), devesse manter a equidistância honrosa e ascética de quem não tem posição sobre o assunto. O grave é usar a plataforma de uma instituição pública para campanhas de perseguição e denúncia, com uma linguagem daninha, reveladora da exiguidade mental desses “spin doctors”. Como se o site da Câmara do Porto fosse um edital onde se afixa o nome dos criminosos e degenerados. À custa do nosso dinheiro.

Sobre o ambiente malsão desta cidade (que cada vez tem menos gente para a cheirar), leia-se o editorial de hoje do Público (muito pouco rigoroso) e este post do Kontratempos (tremendamente parcial).

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segunda-feira, junho 11, 2007

Representante máximo


Claes Oldenburg, Study for Giant Cake, 1963

Espectadores

Ao ler a reportagem da Ípsilon sobre a ausência de portugueses no festival da Eurovisão, perdão, na Documenta de Kassel e noutros certames do Grand Tour, estaco subitamente nesta frase, pelo que me parece conter de inquietante verdade:

“(…) os portugueses como espectadores de um mundo em acção do qual tentam fazer parte sem sucesso. (…)”

E ao ver o Presidente da República, horas mais tarde, com enormes dificuldades ao ler os Lusíadas, fico com a impressão de que também o nosso mundo nos passa ao lado e que somos meros espectadores deste país.

domingo, junho 10, 2007

O Corte

O que é o “corte”? Pouco interessa saber o que é o “corte”. Algo que nos liberta da consciência, do prazer, da responsabilidade. Que nos permite fechar os olhos. Procurado por uns, combatido por outros, o “corte” é sobretudo o símbolo de um futuro distópico onde se desenvolve a peça de Mark Ravenhill, que tem hoje última apresentação no Porto, Estúdio Zero, pela companhia ASSéDIO.

Afastado da euforia das peças que o celebrizaram (Shopping and Fucking ou Handbag), e que, juntamente com as de Sarah Kane (sobretudo Blasted) levaram à definição de um novo género teatral na Inglaterra dos anos 1990 – o in-yer-face theatre (expressão cunhada pelo crítico Aleks Sierz); afastado dessa orgia de corpos e desvios, Ravenhill aparece com texto mais ambíguo e depurado.

Concentro-me num único ponto, que me parece o mais inquietante e revelador da proposta do inglês. Existe um pai e um filho. Paul (interpretado por João Cardoso, que também encena) é o alto funcionário do Estado encarregue de aplicar o “corte”. Stephen é o filho revolucionário empenhado em derrubar a velha ordem em nome de um mundo melhor.

No único momento em que se encontram os papéis estão já invertidos. A sociedade do “corte” deixou de existir e o verdugo está preso. Anuncia-se o novo mundo na figura do filho, que contempla o pai encarcerado com complacência. (A cena parece-me mal gerida pela ASSéDIO, e as possibilidades deste encontro caem por isso na mera sugestão do que diz o texto). Há este momento (cito de memória):

Paul – E o que é feito da nossa casa?
Stephen – Foi transformada em prisão. Já não havia espaço nas outras.
Paul – E é isso então o teu “mundo melhor”: um mundo com mais prisões.

Ou como Ravenhill, n’O Corte, questiona as boas intenções revolucionárias, o desejo por um mundo melhor e a chegada ao poder desse desejo – que rapidamente desbarata os “inimigos da revolução” e tudo aquilo que não obedeça ao “sonho”, calando todas as inconformidades com a utopia. E criando um novo "corte".

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sábado, junho 02, 2007

Fast cars


Buzzcocks em Londres, 1992, a arranhar Fast Cars, do álbum "Another Music in a Different Kitchen" (1978).

A fracção

Era um cruzamento mortal e não arriscava passá-lo, mesmo com semáforo verde, antes de abrandar o suficiente para qualquer perigo. Tinha visto autocarros voarem contra lojas, automóveis a arder, pessoas a saírem de baixo de destroços e até uma criança entalada entre metais torcidos. Maneira que, fosse dia ou noite, estivesse com pressa ou sem nenhuma, e mesmo que tivesse bebido, naquele local todos os sentidos o obrigavam a vigilância extrema. E evitou mesmo um choque com essas precauções.

Mas no dia 11 de Maio tinham combinado tudo e despediram-se. Desceram a mesma rua, a velocidades diferentes, e alternavam a ultrapassagem, encontrando-se quase sempre no semáforo, onde trocavam um sorriso ou faziam algum gesto. Ele ligou o rádio e ficou a observá-la pelo espelho. Dois sinais de máximos... que era?
Tinha a luz verde ao longe; concentrou-se na faixa e esperou. Abriu o vidro ao perceber esse movimento no carro dela. Era só um adeus, mais especial. Quis baixar o rádio mas atrapalhou-se e ficou mais alto. Viu o branco cintilante dos seus olhos, que se moveram num lapso. E ficaram a piscar, a piscar, a piscar.

sexta-feira, junho 01, 2007

Disneylândia (2)

Esta moda dos políticos desatarem a correr nas visitas oficiais e quando ganham eleições podia ser aproveitada pelo dr. Rui Rio. Porque não criar a "Maratona dos Políticos" na marginal do Douro?
Ou a "Gincana dos Líderes" no parque da cidade? Ou uma corrida de sacos na Avenida dos Aliados?

Também se podia organizar qualquer coisa para os candidatos à Câmara de Lisboa. Doze atletas já são um evento.

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sábado, maio 26, 2007

Watching the Wheels

Num casamento a que fui parar um pouco em off-side, reparei numa das empregadas que servia os aperitivos. Passava com a bandeja a todo o gás, obrigando os convidados a movimentos de rapina e resultado incerto. Apanhar um canapé ou um rissol era um trabalho. Alguns caíam, ou partiam-se, a maior parte seguia intacta, fora do alcance de toda a gente. Muitas pessoas ficavam num gesto a meio, penduradas e embaraçadas perante a velocidade dos acepipes. A mulher, impassível, parecia apenas apostada em cumprir o seu trajecto o mais depressa possível, ignorando as tentativas dos convidados e emproando a testa como quem diz “já foste”. Imagino que houvesse um determinado número de tabuleiros que lhe cabia, e que, uma vez circulados pelas salas e devolvidos à cozinha, estaria liberta da sua função e podia ir-se. Fiquei a observá-la algum tempo (sem arriscar um milímetro). Até que me chamaram para a fotografia. E procurei interessar-me por outra coisa.

Off-side

"Isto são coisas que ele me disse em off-side."

quinta-feira, maio 24, 2007

A escala Warhol


A propósito deste repto lançado pelo Pedro Mexia, lembrei-me de um certo encontro com Nick Cave, sem dúvida o episódio mais "marcante" da minha escala Warhol.

Estávamos em 1992, na noite do concerto de Nick Cave & The Bad Seeds no Coliseu do Porto (bastante mais fraquinho que o de 1988, que foi mítico, com a primeira parte dos Mão Morta, e Nick Cave, no encore, a convidar o público a subir ao palco. Lembro-me de ficar ao lado de Blixa Bargeld e assistir ao seu dedilhar frenético e imperturbável).

Depois do concerto havia festa no Meia Cave, com um convidado especialíssimo: o próprio Cave, que fez as honras de DJ durante boa parte da noite. Dançou-se umas horas e, no final, quando saíram todos, em plena Praça do Cubo, resolvi dirigir-me ao homem para lhe sacar um autógrafo. Estava um pouco com os copos e lembro-me de lhe chamar "Nick the Stripper", em alusão a um tema dos Birthday Party. Cave sorriu e parecia o princípio de uma bela amizade. Mas quando lhe espeto a caneta e um papel à frente, deu-lhe uma coisa má e resolveu atirar com aquilo tudo para longe. Fiquei chateado, com certeza que fiquei chateado. E depois de apanhar a caneta, ao passar por ele lancei-lhe uns impropérios. Fixou-me com aquela cara da foto acima - e o personagem é realmente assustador, apesar de magrinho - e deu-me um tabefe. Instintivamente, dei-lhe um pontapé. E ambos nos abispamos.

Confusão. Separa aqui, insulta ali, e de repente estou a falar com Mick Harvey, um dos Bad Seeds, que me pede desculpa pelo comportamento do outro, explicando que a partir de certa hora o homem perdia as estribeiras. Entretanto havia uns tipos da Ribeira, atraídos pelo tumulto, que já falavam em "atirar o camone ao rio". Mas fui magnânimo e deixei-o ir.

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sábado, maio 19, 2007

Arruaceiros & Amantes

Hoje em dia há que ter cuidado que vai tudo parar ao YouTube.

quinta-feira, maio 17, 2007

O eclipse



Não será um grande filme como L’Avventura, mas é com L’Eclisse (1962) que Antonioni vai mais longe no tema da alienação, a que consagrou quatro filmes (além dos citados, contem La Notte e Il Deserto Rosso). Filme gelado com pessoas geladas, O Eclipse segue as personagens de Monica Vitti e Alain Delon, uma mulher atarantada e um jovem ambicioso sem escrúpulos. Filma-se uma espécie de romance entre os dois, e o grande defeito do trabalho, quanto a mim, é a falta de subtileza com que se demarca um território árido, donde evidentemente não poderá sair o amor (tudo ali são sinais dessa impossibilidade). Quanto à sua grande qualidade, falemos do esquecimento.

É como se Antonioni, em certos momentos, se desinteressasse do filme e dos actores, deixando-os a vaguear. Vemos a mulher num aeródromo, aparvalhada, a observar aviões, e é como se a equipa de filmagem tivesse ido almoçar. Entra e sai do plano, e é indiferente que lá esteja ou deixe de ser vista. O mesmo com o homem, no seu bulício de corrector, a atropelar a multidão de viciados na bolsa, a falar ao telefone, a espiolhar as conversas, a passar informação ou a recebê-la. A câmara segue-o sem interesse e por vezes perde-o, depois encontra-o e volta a perdê-lo. Nenhum deles se lembra do filme, na sua azáfama ou no seu torpor. Nenhum deles se lembra do outro. E mesmo quando estão juntos, Antonioni prefere seguir um transeunte ao calhas do que ficar com eles.

A culminar o oblívio estão os últimos seis minutos do filme, a que Scorsese chamou um dos finais mais aterradores da história do cinema. O "tempo parado", quando nenhum dos dois comparece ao encontro que marcaram no lugar de sempre. "A vida, aqui, não continua", diz Scorsese, "fica suspensa". Ou poderá pensar-se que será mais digno continuar o filme, já sem o homem e a mulher, e observar detidamente um carreiro de formigas ou um charco de água. Eles esqueceram-se do filme. Nós esquecemo-nos deles. É o eclipse.

[No clip estão os últimos seis minutos do filme, com música de Prokofiev. Poderá dizer-se que é o essencial de O Eclipse.]

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terça-feira, maio 15, 2007

Um incómodo

Ao fim da tarde, enquanto lia, senti um burburinho estranho na mesa ao lado, ocupada por dois casais de idosos. Aparentemente, uma das senhoras estava a ter um enfarte. Perguntaram-me se era médico e eu respondi que não, mas que tinha um telemóvel. Pouco depois desencantaram um médico e chamaram o INEM. Neste processo todo, e como não havia nada que pudesse fazer, esforcei-me por continuar a ler. Estava numa parte interessante e não me queria desconcentrar. Lá chegou o INEM, e três coletes amarelos rodearam a senhora, que parecia estar melhor. Acabei por me ir embora para não estorvar.
Mas considerei tudo aquilo um incómodo. E observo que a literatura, definitivamente, não nos faz melhores.

segunda-feira, maio 14, 2007

Disneylândia

Na rua onde foi travada a primeira tentativa de implantação da república em Portugal, a 31 de Janeiro de 1891, decorreu ontem o Optimus Ski Open, com a artéria a encher-se de "neve" para acolher provas de esqui e de snowboard. Em Julho será a vez da Avenida da Boavista se transformar novamente em pista de corridas, com dois fins-de-semana preenchidos com provas de calhambeques. Em Setembro será nos céus da cidade que deveremos pôr os olhos, com o desfile de piruetas da Red Bull Air Race, uma "Fórmula 1 dos Ares". Entretanto, não esquecer a corrida de bartenders, o "Festival da Francesinha" e, mais para o fim do ano, a concentração de pais natais. Para quê levar as crianças a Paris ou a Orlando com o Porto aqui tão perto?

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quarta-feira, maio 09, 2007

Peixe graúdo



“As ideias são como peixes. Podemos encontrá-los à superfície das águas, mas lá em baixo, nas profundezas, é que eles são maiores. E sabem qual é o principal isco para os apanhar? O desejo. Temos que desejar as ideias. É o desejo que traz cá para cima esses peixes graúdos.”

Vale a pena ler o resto da conversa.

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terça-feira, maio 08, 2007

Diz-me onde andas



You are a social liberal. Like all liberals, you believe in individual freedom as a central objective - but you believe that lack of economic opportunity, education, healthcare etc. can be just as damaging to liberty as can an oppressive state. As a result, social liberals are generally the most outspoken defenders of human rights and civil liberties, and combine this with support for a mixed economy, with an enabling state providing public services to ensure that people's social rights as well as their civil liberties are upheld.

You are a social democrat. Like other socialists, you believe in a more economically equal society - but you have jettisoned any belief in the idea of the planned economy. You believe in a mixed economy, where the state provides certain key services and where the productivity of the market is harnessed for the good of society as a whole. Many social democrats are hard to distinguish from social liberals, and they share a tolerant social outlook.

Apesar de uma certa rigidez, com perguntas que não deixam grande margem de manobra ("gostas mais do papá ou da mamã?"), e de testes como este valerem o que valem, não tenho grande dificuldade em encaixar-me nestas definições. Liberal clássico e social-democrata. Obviamente, estou mal representado neste país.

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domingo, maio 06, 2007

Mundos perdidos

Sentar-me ao balcão, tomar café e fumar dois cigarros enquanto leio o jornal. Eis um pequeno hábito que experimento já como transgressão e que me enche de saudade.

terça-feira, maio 01, 2007



- Está um tempo porreiro. Saímos?

Liberdade

Pior que ser trocado por outro é ser trocado pela Liberdade.

segunda-feira, abril 30, 2007

Deve andar lá perto

"(...) Se bem me lembro, nos meus tempos dom-joanescos eu cheguei a abandonar mulheres por causa de uma nódoa na meia, de uma palavra estúpida, dos dentes mal lavados; mas agora perdoo tudo: a mastigação, a azáfama com o saca-rolhas, as conversas longas que não valem um pataco. É quase inconscientemente que perdoo, sem forçar a vontade, como se as faltas de Sacha fossem as minhas próprias faltas, e muitas coisas que dantes me faziam contorcer produzem agora em mim enternecimento, e até admiração. Os motivos desta tolerância total residem no meu amor por Sacha, mas onde residem os motivos deste amor, isso, palavra de honra, não sei dizer."

Último parágrafo do conto O Amor, de Tchékhov.

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segunda-feira, abril 23, 2007

Moralismo assassino



Neste post do Corta-Fitas o autor interroga-se sobre a possibilidade do massacre na Universidade Tecnológica da Virgínia, ocorrido na semana passada, ser um dos sinais de uma sociedade que caracteriza como “progressivamente mais individualista e impiedosa, sem identidade ou «interioridade», dominada pelo hedonismo (…)”. Ora sucede justamente que as declarações do assassino, contidas no vídeo enviado à NBC, parecem antes de mais acusar esse hedonismo e falta de piedade, que supostamente o “obrigaram" a fazer aquilo. Temos portanto uma posição moralista, que denuncia os costumes, e não uma apologia do caos e da dissolução. Poderá argumentar-se que também isso é sinal das mesmas características apontadas no post, mas a verdade é que surge de um ponto extremado (e ensandecido) dessa visão.

Coisa que não é novidade em casos de psicopatas. Para dar dois exemplos, refira-se as prostitutas assassinadas em Ipswich no final do ano passado (foram só prostitutas). Ou o Unabomber, que criticava o hedonismo e paternalizava o Homem na sua relação com as máquinas. Também no cinema há um longo rol de moralistas sádicos, desde o beato de The Night of the Hunter (na imagem) ao asssassino de Se7en, que perseguia com diligência os pecados mortais. E mesmo Travis Bickle, do post abaixo, que pretendia limpar a cidade das suas impurezas. Há bastas coincindências entre o discurso moralista e a atrocidade. Com o “ofendido” a arrogar-se a anjo-vingador que irá purificar e punir a sociedade. (Já num outro campo, podíamos falar de radicalismos políticos e religiosos, que em larga medida se colam a esse perfil.)

Outra coisa que li e da qual discordo foi a associação entre o crime da Virgínia e o suposto fracasso do multiculturalismo (aparentemente porque o assassino era asiático). É caso para perguntar pelos WASP's que dizimaram estudantes em Columbine, 1999, ou pelos caucasianos que fizeram estoirar um prédio em Oklahoma, 1995, ceifando 168 vidas. Há muito para dizer sobre o multiculturalismo, mas isso é claramente um tiro ao lado e sem jeito nenhum.

quinta-feira, abril 19, 2007

Moicano



Se o penteado dos índios Wyandot (que os primeiros exploradores franceses da América confundiram com a tribo dos Mohawk) viria a ser utilizado, na II Guerra, pelos paraquedistas da divisão "Screaming Eagles", e ainda hoje, no Iraque, parece alimentar as fantasias de muitos soldados, numa espécie de reclamação de um símbolo ancestral de combate e virilidade, extraído a uma cultura devastada e absorvida, um mesmo fenómeno parece verificar-se na moda: o moicano adoptado pelos punks como manguito central de uma postura de confronto e provocação (e Scorsese percebeu bem essse “potencial desviante” no seu Taxi Driver de 1976, ano em que tudo explodia em Londres e Nova Iorque), também ele foi devastado e absorvido pelo mainstream, perdendo a sua aura ilícita e convertendo-se no regalo de sucessivas tendências: das mais sofisticadas àquelas que agora predominam no bairro do Lagarteiro.

segunda-feira, abril 16, 2007

Para ler, reler e guardar perto


Acabo de ler Elogio da Intolerância, de Slavoj Žižek, penetrante panorâmica sobre o mundo actual, com paragens nos temas mais diversos (do multiculturalismo ao Viagra). É um texto que questiona o chão que pisamos, esse chão onde passa a política e as decisões que nos afectam.
E independentemente de se aderir às suas teses, ou rejeitá-las, vale pelo contacto com um pensamento poderoso.
Voltarei ao livro, mas aproveitando a boleia das últimas semanas, e o chinfrim à volta de Sócrates e do canudo, transcrevo uma passagem do último capítulo, sobre a "interpassividade", onde encontro ecos com esta obsessão que tem dominado o espaço público português.
"(...) toda essa incessante actividade (...) tem qualquer coisa de profundamente inautêntico, e evoca, em última análise, o neurótico obsessivo que ou fala permanentemente ou se mantém freneticamente activo, precisamente com o fim de garantir que alguma coisa - aquilo que realmente importa - não será perturbada, continuará sem mudar."

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terça-feira, abril 10, 2007

Loja dos 300



Se há uma intenção política em 300, ou qualquer analogia com a actualidade (a defesa do Ocidente livre e esclarecido por um grupo de bravos, contra o misticismo e a escravidão do Oriente), ela só cai no ridículo com esta caricatura tecno-kitsch da batalha de Termópilas.

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domingo, abril 01, 2007

Think again



Sound of silver talk to me
makes you want to feel like a teenager
until you remember the feelings of
a real live emotional teenager

then you think again


Primeiro vídeo extraído de "Sound Of Silver", dos LCD Soundsystem (que não me parecia tão bom como o primeiro mas que tem crescido). O tema do clip é North American Scum. A letra é de Sound of Silver.

O osso

Quando nos exprimimos fora da nossa língua estamos obviamente emperrados. Castrados em recursos e vocábulos, limitamos também o próprio pensamento, que deverá adequar-se à escassez de meios. Nesse exercício poderá pensar-se que nos diminuímos – simplesmente, não conseguimos dizer como diríamos, e tendemos a simplificar, excluir, esvaziar. Mas também é verdade que, expressando-nos em língua estrangeira (e independentemente do domínio que tenhamos sobre ela levaria anos de contacto diário a atingir uma nesga da relação que temos com a nossa), há a possibilidade de sermos directos, atalhando por entre a canga que por vezes convocamos para dizer o mais simples. Há a possibilidade (ou a fatalidade) de atingir o osso em numerosas situações – dizendo apenas o necessário, e nada mais. Quem melhor entendeu isto foi Beckett, ao escrever em francês e só depois traduzindo para a língua-mãe: com os resultados que se conhecem. Apanhar o osso, dizer apenas o que tem de ser dito. Que é cada vez menos.

terça-feira, março 27, 2007

Me encanta mi pais

quinta-feira, março 22, 2007

Dois anos



Vindo de lado nenhum a caminho de parte alguma.

Obrigado pelas visitas, comentários e mails. A Tesoura segue dentro de momentos.

quarta-feira, março 21, 2007

Declaração de voto



A poucos dias da grande decisão (e como vou estar longe), anuncio a minha intenção de voto. Aparentemente, não servirá de nada, e o Grande Português será o Grande Salazar (que bem podia ter deixado a malta votar que ia dar ao mesmo). E como é Dia Mundial da Poesia, aqui vai um soneto.

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio,
O mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Num' hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar um' hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

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Os sem-parte



Muito recomendável o documentário Lisboetas, de Sérgio Tréfaut,
que só agora vi. Os novos rostos de Portugal enredados na malha burocrática e sujeitos a empregadores sem escrúpulos que os engatam no Campo Grande e outras esquinas. Nada que não soubéssemos, ou pudéssemos saber. Mas aqui finalmente próximos, seguidos pelo olhar da câmara que nos obriga realmente a vê-los e escutá-los. Sim, estão entre nós e têm sonhos. Ou tinham. Como diz um deles: "rapidamente se percebe que não é um país rico". E entretanto ficam. Ou fogem. O Portugal do betão vai fazendo vítimas. Uns vão para a rua, outros vão para Espanha. Outros adaptam-se. Como podem. E queixam-se do ensino. “É muito mais fraco que na Rússia. Se o teu filho souber a língua não lhe custa nada.” E já perceberam tudo, e a câmera de Tréfaut testemunha-o. Sem concessões nem placebos. Há uma redenção no fim. Mas uma redenção humana, não portuguesa. Porque estes lisboetas, do Brasil à Rússia, do Paquistão a Angola, já perceberam tudo. Alguém lhes disse, e prometeu, e eles vieram. “Nenhum bom trabalho compensa estar longe da terra”. Mas fosse um bom trabalho. Vieram para Portugal, e na maior parte dos olhos lê-se: “em que buraco me meteram”.

A imagem reproduz um cartaz publicitário da Benetton, da autoria de Oliviero Toscani. Travessia do Adriático, em 1992, de um cargueiro pejado de albaneses e outros imigrantes de países de leste. O destino é Itália. Para muitos deles, outro buraco.

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terça-feira, março 20, 2007

Orquídea



Apesar de poderem ser vistos como uma espécie de "erro", os fungos são formas de vida poderosas que conseguem desenvolver-se nos mais assépticos locais (pensem no bolor das geladeiras). E que podem ser nocivos (cogumelos venenosos), suculentos (como os que comi ontem), ou alucinogénios. Na criação artística acredito num fenómeno semelhante - o "erro", como produto de uma actividade cerebral intensa (e divergente) que se reflecte entre o intragável e o esplendoroso, ou o apenas delirante. Leva tempo a encaixotá-lo, porque leva tempo a percebê-lo. Mas perseguir o "erro", como me parece ser o caso deste senhor, é já um gesto que, tendo em conta os riscos implicados, me parece eminentemente louvável.

O Arco e a Orquídea é um projecto de Bernardo Rodrigues para unidade hoteleira no sul da China (que inclui casino e área comercial). Para outras imagens e descrição adequada, espreitar aqui.

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segunda-feira, março 19, 2007

Cogumelos































Apesar da clareza máxima das imagens de Bernd e Hilla Becher, onde se cartografa a "arquitectura anónima" dos grandes parques industriais, há algo de inquietante nestes edifícios sem autor e com uma função precisa. É como se fossem um "erro" de sistema operativo.

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terça-feira, março 13, 2007

Alemanha, Ano Zero



O que mais interessa em The Good German não é o palimpsesto sobre o cinema clássico, a recuperação de técnicas de iluminação e de câmera dos anos 1940 e a sua fisionomia noir plena de citações. Também não é ter Cate Blanchett como femme fatale gelada. O que mais interessa no filme de Soderbergh é o anonimato dos seus intervenientes. Ninguém ali verdadeiramente importa enquanto ser com identidade. E o único que é procurado por todos – um matemático nazi – é-o apenas pela sua utilidade. Mesmo o suposto romance, que teria levado o correspondente de guerra (George Clooney) a uma Berlim mutilada em busca da sua amante, desvanece-se diante da utilidade que domina todos os propósitos e movimentos dos que vivem na cidade. Na Berlim de 1945 não havia ainda espaço para o amor ou para qualquer sentido de lealdade. E quem tenha lido Outono Alemão, de Stig Dagerman, sobre o pós-guerra, ou A Queda de Berlim, de Antony Beevor, sobre os últimos dias do Reich, dificilmente se surpreende com uma das frases-chave do filme: "Em Berlim há sempre uma história pior." Entre as atrocidades e o calculismo mais cínico, não há verdadeiros inocentes em nenhum dos lados e em nenhuma idade (e sob esse ponto de vista, Germania Anno Zero continua insuperável no tratamento da época). Tal como os heroinómanos, quem se move em Berlim, em 1945, pensa apenas no que lhe será mais útil e mais rápido para atingir um fim: na maior parte dos casos, sobreviver.

Hoje em dia, felizmente, é um sítio do caraças.


Potsdamer Platz, 2005, imagem de Pedro Granadeiro

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segunda-feira, março 05, 2007

Melinda e Melinda

Se ao fim da tarde, passeando na rua, nos cruzamos com um indivíduo que arrota, duas mulheres afogueadas a arranjar a roupa, um atleta de fim de semana, acelerando as banhas a ofegar, e ouvimos um pouco do relato do Beira-Mar, saído do rádio a pilhas de um homem que vigia uma garagem, dependendo da perspectiva, podemos considerar tudo isso idílico e divertido ou afundarmo-nos na depressão mais funda.

quinta-feira, março 01, 2007

Pesquisar por datas

Tal como em certos filmes se utiliza o dispositivo das notícias para localizar a acção no tempo (a primeira guerra do Iraque é recorrente), também há dias que se poderão recordar pela simples associação a um determinado evento (onde é que estavas no 11 de Setembro?).
Bem feitas as contas, são muito poucos os dias que verdadeiramente recordamos (pelo menos no sentido de lhes atribuir uma data). Essa invisibilidade da maior parte dos dias, no fio do tempo, depende por um lado da sua própria banalidade, mas também do facto de, por exemplo hoje, uma das notícias dominantes ser o relançamento de Paulo Portas na política, ou ontem, já não me lembro bem, ter sido um reitor qualquer, de uma universidade qualquer, que se desculpava sobre não sei o quê.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

O ano de Itália



Não me recordo de ter festejado nenhuma atribuição de Óscar como se fosse um golo. Aconteceu ontem, ao anunciarem Martin Scorsese como vencedor da melhor realização (e poucos minutos depois, no 2-0, ao premiarem The Departed como melhor filme do ano). Verdade que Entre Inimigos não é dos meus predilectos na obra de Scorsese. Taxi Driver, Goodfellas ou Casino são as principais razões para ter saltado. Ou mesmo os documentários sobre o cinema americano e italiano que vi recentemente e sobre os quais escrevi. Mas pouco importa que tenha sido por este. Scorsese é dos quatro ou cinco realizadores vivos que mais admiro. Cinéfilo inveterado e autor de uma obra vasta donde emergem personagens inesquecíveis. O reconhecimento da Academia só peca por chegar tarde.

Como chegou tarde o Óscar de carreira a Ennio Morricone, compositor que assinou para cima de 500 bandas sonoras e tem esse mérito raro de erguer a sua música a memória máxima de alguns filmes (que sobrevive depois, autonomamente, como partitura esplêndida). Como o próprio explicou, "o compositor deve encontrar no filme uma dignidade que vá além do filme". Na cerimónia, ao agradecer o prémio, desatou a falar em italiano, marimbando-se para o desconcerto na plateia. Ti ringrazio anche io.

Numa noite em que perdeu Babel (e ainda bem), satisfação ainda pelo Óscar de melhor estrangeiro para As Vidas dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, filme exemplar sobre os mecanismos da Stasi na antiga RDA.

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domingo, fevereiro 25, 2007

Perguntem pelo Jankauskas

Sempre que conhecia uma estrangeira aludia a figuras culturais do seu país, procurando impressioná-la e começar conversa. Lévinas? Ionesco? Arvo Part?... E aguardava pelo reconhecimento triunfal.
Na maior parte dos casos, porém, a literacia das visadas não chegava a Arvo Part, Lévinas ou Ionesco. Mas brilhavam-lhes os olhos ao dizer que conheciam bem o Figo e o Ronaldo.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Disfarces



"(...) Nessa altura aprendi a conhecer a influência que um determinado traje pode exercer directamente sobre nós. Mal vestia um destes fatos, tinha de confessar a mim próprio que ele me tinha em seu poder; que ele me ditava os meus movimentos, a expressão do rosto e até as ideias; a minha mão (...) não era, nem de longe, a mão habitual; ela movimentava-se como um actor, mais, poderia até dizer que ela se observava a si própria, por muito que isto soe a exagero. Estes disfarces, no entanto, não se desenrolavam até ao ponto de eu próprio me sentir alienado; pelo contrário, quanto mais diversificadamente me transformava, tanto mais convencido ficava de mim mesmo. (...)"

Rainer Maria Rilke, As Anotações de Malte Laurids Brigge (Relógio D'Água)

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quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Progresso nocturno


Imagem de Miguel Cardoso, no Maus Hábitos

Num excelente artigo no Mil Folhas – onde assinala algumas das mais recentes marcas da arte contemporânea no Porto, como a estrutura de Pedro Cabrita Reis, intitulada Palácio, ou a Torre Burgo, de Eduardo Souto Moura, e a escultura que lhe subjaz, da autoria de Ângelo de Sousa, assim como projectos mais efémeros que têm tido lugar na Casa da Música (actualmente está Labirintite, de Ricardo Jacinto) – , Óscar Faria utiliza a frase “cidade em progresso” para titular o trabalho. Aqui está uma frase que nos últimos anos só com muito boa vontade se pode associar ao Porto. Mas a verdade é que, ao lê-la, me lembrei de um outro aspecto em que a cidade parece estar a fazer progressos.

Sem sair, para já, da arte contemporânea (mas as coisas têm-se cruzado e de que maneira), refira-se a extensa rede de espaços artísticos alternativos (de natureza comercial ou de laboratório) que tem semeado a cidade nos últimos anos. Desde o limite atlântico, no Passeio Alegre, com o espaço Era uma vez no Porto (edifício mosaico semelhante ao Artes em Partes), à Constituição, onde surgiu recentemente o Serv'Artes (com cerca de 1000 metros quadrados destinados a exposições e concertos), e passando por uma miríade de pequenos locais geridos pelos artistas, que ali trabalham e expõem. Especial destaque merece a Rua do Almada, onde as rendas baixas (até quando?) têm permitido o florescimento de todo o tipo de comércio alternativo – lojas de vinil (e de impressão de vinil), de design e de material retro e até a embaixada lomográfica do Porto – uma pequena Carnaby Street em formação.

O que me traz ao post, no entanto, é a percepção de um outro “progresso” – o da vida nocturna do Porto. Com efeito, e após o definitivo voltar de costas à Ribeira (decisão tomada pelo cansaço em relação a situações de que já aqui falei) e o último estremecimento noctívago que representou o Club Kitten, no Triplex, nos anos 2001/2002, a cidade colocou-se ao nível de Paços de Ferreira em termos de ‘movida’. Aparentemente, as coisas estão a mudar. E, o que é mais extraordinário, a mudar para uma zona estranha a estes andamentos – a Baixa da cidade.


(Já me habituei e gosto. Agradeço a imagem)

Uma opção que tardou, mas que cegava os olhos pela evidência. Onde mais haveria condições para instalar um circuito dinâmico, capaz de atrair investimentos e propostas diversificadas e chamar população de toda a área metropolitana? Nenhuma outra zona possui as características da Baixa: o seu peso histórico e monumental, como centro incontestado da região; a concentração de teatros e salas de espectáculos; a recente adição de vias pedonais e o renovado desenho de artérias nevrálgicas; a falta de vizinhança (a Rua 31 de Janeiro tem um único e escasso habitante); a dimensão dos espaços disponíveis (e a sua condição de devolutos a cair de podre); a sensação de que a zona mais nobre da cidade ficava entregue aos bichos a partir das dez da noite; e a noção, para os mais atentos, de que tal facto era inconcebível e colocava o Porto definitivamente à ilharga do funcionamento das cidades civilizadas. O que se está a passar é ainda ténue, mas representa uma tomada de consciência sobre o potencial da zona. Que não se deve esgotar na “noite”, evidentemente, mas antes funcionar como estímulo à revitalização geral, que passa antes de mais pelo restauro de edifícios e pelo repovoamento da baixa.

Mas voltando à noite, que é actualmente o indício mais visível desse desejado ressurgimento, há de facto progressos a assinalar. No espaço de poucos meses a oferta triplicou, e aos pioneiros nocturnos naquela área, Maus Hábitos e Passos Manuel, que se mantêm como referências de espaços que aliam o carácter lúdico à dimensão cultural (com programações regulares de concertos, performances e exposições), a estes vieram juntar-se o renovado Batalha, ainda a precisar de fôlego e orientação, mas com espaços promissores e uma esplanada única no centro; o Pitch, que com a sua acústica e selecção criteriosa de DJ’s se afirma já, a par da Indústria, como melhor clube do Porto; o Café Lusitano, que dificilmente será batido, em termos de decoração, por outro local da cidade; e a mais recente aquisição, o Plano B, antigo armazém com possibilidades imensas e uma vontade assumida de acolher propostas (apesar das agulhas por afinar). Nas redondezas, encontra-se ainda o Tendinha, pequeno basfond para os saudosos do rock, e uma série de pequenos bares e cafés que vão contribuindo para a circulação de gente.

Neste novo eixo, delimitado entre os Poveiros e o Piolho (que se tornou o feliz sucessor da Praça do Cubo), há espaços para diversos públicos e sensibilidades, mas sobretudo nota-se a aposta, na maior parte deles, em afirmar uma personalidade: seja pelo estilo ou pelas actividades que oferecem, cada um deles é associável a uma determinada “onda”, no que se tornam radicalmente distintos de outras zonas nocturnas da cidade, onde imperam os barracões de engate e música foleira. Falta agora mais restaurantes (abertos até mais tarde), um clube de jazz e um acordo alargado entre os locais e os parques de estacionamento, de modo a evitar o caos e a levar mais gente para a rua. Um envolvimento maior dos cafés históricos da Baixa, como o Guarany ou o Garça Real seria também desejável.

É costume dizer-se que os tempos mais difíceis e cinzentos favorecem as reacções mais ousadas e interessantes. Talvez isto seja um princípio.

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domingo, fevereiro 11, 2007

Sim

E agora despachem-se a tirar os cartazes.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

O jogo do sério











Entre os anos 1964 e 1966 foram realizados cerca de 500 "screen tests" por Andy Warhol e os seus colaboradores da Factory. O procedimento era simples, e à excepção de alguns casos, que serviriam outros projectos, tratava-se de convidar individualidades - o pressuposto, para Warhol, era possuírem star quality - a sentarem-se durante alguns minutos diante de uma câmera fixa sem se mexerem. Pela lente imóvel desfilou o quem é quem da Nova Iorque artística dos anos 1960 (nas imagens, seguindo os ponteiros do relógio, está Edie Sedgwick, Dennis Hopper, Baby Jane Holzer e Lou Reed), mas também vedetas internacionais como Salvador Dali ou Giangiacomo Feltrinelli.

Filmada a preto e branco, em 16 mm, à velocidade de 24 frames por segundo, e sem qualquer edição, até ao final do rolo, a sessão era depois convertida numa velocidade mais lenta, de 16 frames por segundo, o que dava um total de cerca de quatro minutos para cada rosto (a duração de uma música pop). Jogando com os screen tests de Hollywood, em que se filmam os candidatos a um determinado papel para avaliar a sua presença, o projecto de Warhol transformava os testes no próprio evento, uma espécie de aquecimento para coisa nenhuma; havendo também quem sugerisse tratar-se de um comentário oblíquo à “era dos testes” nos EUA (sobretudo os testes de defesa nuclear, bastante comuns nas escolas americanas da guerra fria).

Outros apontam sobretudo a intenção de prolongar os seus retratos no celulóide, utilizando, ao invés de telas, o ecrã e o projector. Alguns destes "quadros" foram usados como fundo no The Exploding Plastic Inevitable, espectáculo multimédia encabeçado pelos Velvet Underground. Manipulando a luz e a sombra, Warhol procurava extrair aspectos particulares dos modelos, ora acentuando um carácter mais etéreo, com a sobreexposição de luz, ora configurando uma atmosfera mais negra, carregando nas sombras. “Não aguentávamos estar em pose durante tanto tempo e a nossa personalidade irrompia”, testemunhou uma das retratadas.

Tive oportunidade de ver alguns destes filmes (no YouTube há uns tantos) e retenho sobretudo a ideia de rostos à procura do Eu. Muitas vezes em close-up, constata-se que os primeiros segundos são comuns aos vários modelos, todos eles voluntariosos e algo intrigados. À medida que o tempo passa, porém, “irrompem as personalidades”, e vemos como por exemplo as faces mais simétricas aguentam impassíveis quase sem pestanejar, como se pudessem permanecer eternamente serenas debaixo de observação, enquanto os rostos mais imperfeitos rapidamente se desmancham num sorriso ou desviam o olhar, exibindo trejeitos de embaraço. Mais para o fim, surge novamente algo em comum, um certo enfado, mas também um descontrolo em todos os modelos, que exibem agora vestígios de uma identidade cada vez mais nua e onde repicam os traços da grande paleta humana.

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sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Vida

"(...) Na verdade, esta posição sobre a "vida" tem muitos pressupostos que são intrinsecamente religiosos e de fé, e que ou são aceites ou não, mas não podem ser considerados auto-evidentes para quem não tem fé. Implica, por exemplo, a ideia de que existe uma "alma" - chamemos-lhe o que quisermos vai sempre dar aí -, uma presença espiritual que está para além do corpo, um Logos de natureza radicalmente alheia à mecânica do corpo, que não se reduz a ele, que está para além dele, que é imortal. A "vida" a que se bate palmas nas manifestações é mais do que a do corpo, é a da criação divina, e compreende-se que, sendo entendida como pertencendo a Deus, não se queira dá-la a César, ao Estado moderno.

E se eu não acreditar que há uma "alma" e me basta o código genético, e se eu for materialista e entender o corpo como uma máquina aperfeiçoada apenas pela evolução natural e resumir o Logos a um produto dessa mesma máquina, e se eu entender que verdadeiramente tudo tem a ver com o "egoísmo" dos genes e for sociobiológico, será que tenho que aceitar esta visão da "vida" mesmo sem fé?

(...) É, por isso, necessária muita prudência ao usar as palavras como valores civilizacionais comuns, quando o que é civilizacional é a convivência de diferentes entendimentos das mesmas palavras e não tanto uma determinada interpretação, muito menos imposta por lei, muito menos pretendendo o monopólio da moral e da civilização."

José Pacheco Pereira, no Público de 1 de Fevereiro de 2007

Não andam por aí muitos textos destes. Nem posições tão claras:
uma recusa liminar da superioridade moral dos crentes.

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segunda-feira, janeiro 29, 2007

"Magick", do recém-editado Myths Of The Near Future, dos Klaxons

Doces chavões

Sim. Reclamamos o direito à festa. As pessoas quando vêm aos nossos concertos querem divertir-se a sério e nós damos-lhes isso. É isso que importa: sentirem que nos podem ir ver sendo elas próprias, vestindo a roupa que lhes apetecer e comportando-se espontaneamente, não sentindo constrangimentos.”

Excerto de uma entrevista aos Klaxons, publicada na Y por Vítor Belanciano.

Há mais de 20 anos que leio frases destas na imprensa musical (desde o velhinho Blitz dos pensamentos ociosos e dos pregões, e da Melody Maker, publicação de culto nos eighties). “É isso que importa: sentirem que nos podem ir ver sendo elas próprias, vestindo a roupa que lhes apetecer e comportando-se espontaneamente, não sentindo constrangimentos.” É quase como ouvir o jogador de futebol falar no mister, ou escutar a língua de pau de algum político. Muito raro, ao longo dos anos, apanhar ideia original de membros de bandas pop em ascenção (nem coisas escandalosas nem epifanias). E apesar dos elementos novos que vão surgindo, e influenciando a música e a sua promoção (como o MySpace e outros programas), o chavão continua a praxe. Agora isso, para quem gosta da pop não interessa nada, e é até reconfortante ir ouvindo as mesmas coisas da adolescência e saber que se reproduzem esses mesmos desejos e afirmações.
Agora é Klaxons e a “new rave”? Pois siga.

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quarta-feira, janeiro 24, 2007

O velho mundo



(No início do ano passei uns dias viciado no Second Life [SL]; e foi pouco antes que tive conhecimento deste “mundo paralelo”, salvo erro, através de uma reportagem do Público. Resolvi investigar, pois parece-me um fenómeno que ainda vai no adro e cujas implicações são vastas e ainda por discernir. Deixo aqui as minhas notas sobre a experiência, que de resto foi breve. E aconselho aqueles que não fazem a menor ideia do que se trata a espreitar primeiro este resumo.)


Há um baque inicial com este mundo gráfico onde se movimentam figurinhas que somos nós. Próximo de uma linguagem de BD, impressionam alguns cenários do grid (o território SL), como esta Amsterdão que se vê na imagem, e onde o meu avatar se encontra numa pausa de reflexão. Apesar da grande instabilidade que ainda existe (constantes crashes e congelamentos), não nego a euforia das primeiras horas – o boneco pode voar, assobiar, fazer manguitos e deslocar-se rapidamente dentro do grid através do teletransporte. Depois, há outros bonecos, personalizados (ou altamente personalizados), que representam milhares de pessoas ligadas em todo o mundo (os últimos dados referem cerca de dois milhões e meio de “residentes”, mas o número multiplica-se diariamente e é enganador, pois cada um pode assumir diversos avatares). Com esses bonecos podemos interagir e praticar o inglês, o que em princípio não distinguiria muito a SL de outros programas de relacionamento como o Messenger ou o mIRC, para lá do evidente upgrade do mecanismo (as conversas, aliás, não divergem muito das do mIRC, e os recém-chegados falam sobretudo sobre o espanto comum perante tudo aquilo). Mas a SL não se esgota no chat, nem ele é, como percebi, a grande preocupação do “jogo”.

Se inicialmente andamos desvairados a experimentar tudo, a mudar o boneco, a arranjar adereços (que podem ser barcos ou gestos específicos), ou a explorar o grid, por entre cidades, clubes, museus, ou pistas de automobolismo; e nos vão dizendo que há mais coisas, como concertos de bandas reais (que utilizam avatares e transmitem em directo a sua música em cenário apropriado; ver na imagem os U2), ou sessões de cinema e de poesia, ou combates de boxe, ou shows de striptease; e vamos sabendo que se ensaiam procedimentos médicos, por exemplo, com a criação de complexos virtuais para testar a resposta a emergências, e se praticam estas simulações com toda a seriedade e profissionalismo; depois de todo o espanto, e também da sensação que apesar de evoluído se trata ainda da versão beta de algo descomunal (pensem em capacetes e sensores) e não muito distante; depois deste espasmo, deste frenesi, desta alucinação, caímos finalmente em terra e começamos a perceber a Second Life – e que afinal, por detrás do aparato, se esconde a mais comezinha das “First Lifes”.



Para compreender isto falemos de Linden Dollars – a moeda corrente na SL. Com uma cotação que oscila mediante as habituais regras da economia e, segundo os últimos dados, se encontra na relação de 1 Linden = 0,31 Doláres, e podendo ser trocado por dinheiro vivo, o Linden Dollar é a mola que faz mexer todo o universo da SL – e que explica a transferência a tempo inteiro de muitos indivíduos para este “mundo novo”.

E como é que se acede a esses Linden Dollars? A resposta é simples: trabalhando. Existem classificados na SL, e os empregos vão desde estar sentado num determinado local (para dar ambiente a um bar, por exemplo) a construir casas ou desenhar roupas para os avatares. Pelo meio há uma infinidade de ocupações, e não surpreenderá ninguém que uma delas seja a prostituição (sim, os bonequinhos fornicam e gemem, muitas vezes em plena Dam Square). Mas esta opção, extremamente popular - há zonas inteiras com meninas e meninos e, tal como as páginas pornográficas estão para a web, também aqui o sexo é omnipresente – , esta opção implica ter já algum dinheiro, pois não é qualquer avatar que se torna “desejável” – e os modelos base (gratuitos) não levam ninguém a gastar um tusto. É preciso investir num boneco sensual.



As grandes fortunas, porém, e há já milionários na SL (que são também milionários no mundo de cá), constroem-se sobretudo pela aquisição de terrenos, que são depois vendidos ou alugados a outros residentes. De notar que estes senhorios, se inicialmente fazem as suas compras aos responsáveis máximos pela SL (a empresa Linden Lab), têm depois autonomia para dispor das suas propriedades e apenas respondem por si nos negócios que fazem. O mais célebre destes landlords chama-se Anshe Chung, que alegadamente factura cerca de cento e cinquenta mil dólares por ano. Outro negócio rentável é o design (de edifícios, roupas, bonecos ou mobiliário), e qualquer um poderá tornar-se arquitecto ou marceneiro no interior da SL. As possibilidades, no fundo, são inesgotáveis, uma vez que as regras são as mesmas do mundo real: se há procura de um serviço, esse serviço vende-se, ou então cria-se um novo serviço e procura-se clientela. O crescimento económico na SL, e a progressiva sofisticação das suas regras, abriram já o debate, nos EUA, sobre a necessidade de se aplicar impostos. Recomendo a leitura deste artigo da Wired, onde se dá conta de uma série de casos de sucesso na SL, de gente que simplesmente trocou o seu emprego no mundo dos átomos pelas oportunidades do universo binário. Há um ex-professor que chega mesmo a prever que os seus filhos, um dia, irão encarar com naturalidade essa opção, e a escolha entre um mundo ou outro irá depender apenas do vencimento.

Linden Dollars é a chave do "jogo". E apesar de na origem da SL (e de programas análogos, como o Active Worlds) se encontrarem laivos de utopia e uma suposta inspiração na literatura cyberpunk – a SL será uma recriação do metaverse, o mundo descrito no livro Snow Crash, de Neal Stephenson -, a verdade é que, ultrapassado o entusiasmo, se percebe bem o pragmatismo que domina a coisa. Os recém-chegados, e os curiosos, podem entreter-se no chat e a fazer piruetas no meio da rua, viajando pelo grid sem grandes propósitos, mas os residentes antigos, os que decidiram "jogar", sabem bem o que fazem e para onde vão. E assumem com escrúpulo a sua personagem. O dono de um bar veste-se como o dono de um bar e comporta-se com distanciamento e altivez. A consultora de moda recria a consultora de moda que viu na televisão e captura-lhe os tiques. O proprietário (que tem o enunciado visível no boneco) anda sempre de fato e com adereços de luxo. A prostituta põe a mão na anca e lança piropos aos transeuntes. Cada um no seu papel, cumprindo com zelo as suas funções. A destoar desta sociedade surgem apenas os furries, avatares com formas de animais ou figuras mitológicas, que representam o elemento de fábula que terá estado na cabeça de alguns precursores. “Mas um tipo não faz negócio com alguém que é um pato ou um tritão”, refere um dos entrevistados no artigo da Wired.



A febre do Linden torna-se visível logo nas primeiras horas, assim como os diferentes estatutos e classes que povoam a SL. Recordo a história que se passou numa das minhas visitas. Dois avatares com a forma de rappers bem sucedidos, estilo Snoop Dogg, com correntes douradas e casacos de pele, testavam os seus bólides à saída de um bar. Ingenuamente, perguntei-lhes para que serviam os carros, uma vez que ali se podia voar ou usar o teletransporte. A resposta foi pronta: “this is a pussy catcher, son." E depois explicaram-me que não era para todos. Aqueles pedaços de pixeis custavam para cima de dois mil Linden. E é assim com tudo. Há os que têm carros de marca (desenhados por alguma celebridade) e há os que vão a armazéns de produtos grátis buscar um carocha. Há os que têm um boneco tosco e os que foram ao solário e são esbeltos. Há os que dormem na rua (eu acordava desgrenhado num beco de Amsterdão) e os que têm ilhas privadas. Há os que são donos disto e daquilo e os que não têm onde cair mortos. E o sucesso, a ascensão, o “jogo”, é incutido desde início nos caloiros, que recebem toda a espécie de convites para se tornarem membros de clubes ou casinos. Ao aceitarem, imediatamente lhes cai um rótulo que torna pública a sua condição. E o resultado é uma multidão de VIP’s que convenientemente publicita uma multidão de marcas. O comportamento dos residentes vai de acordo com o estatuto, e não se espere grande atenção por parte de um senhorio ou de um vendedor. A conversa da treta fica para a ralé.

Ao fim de uns dias nisto, percebe-se a antiguidade deste mundo e imagina-se que o Homem, para onde quer que vá, repetirá tudo o que é e o que já fez. E depois escolhe-se: ou se sucumbe ao tédio ou se começa a "jogar". Eu fartei-me. Prefiro este mundo, que afinal é igual. E depois de apancalhar o grid algumas horas, terminei com grandeur, atropelando com o meu buggy três avatares com a forma de galinhas.

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sábado, janeiro 20, 2007

O Vilão



When devils will the blackest sins put on,
They do suggest at first with heavenly shows,
As I do now: for whiles this honest fool
Plies Desdemona to repair his fortunes
And she for him pleads strongly to the Moor,
I'll pour this pestilence into his ear,
That she repeals him for her body's lust;
And by how much she strives to do him good,
She shall undo her credit with the Moor.
So will I turn her virtue into pitch,
And out of her own goodness make the net
That shall enmesh them all.

W. Shakespeare, Othello (Acto Segundo, Cena III)

Shakespeare chamou-lhe Othello, mas a mais fascinante personagem do texto foi sempre Iago, o manipulador genial, o "demónio do Ocidente" na formulação de Harold Bloom, que considera que "entre todos os vilões da literatura, ele tem a honra nefasta de ocupar uma posição inatingível". Em Otelo, actualmente em cena no São João, é mais uma vez sobre Iago que se concentra o principal interesse e o principal terror. O que não se explica apenas pelo texto, mas também pelo desempenho de Nuno Cardoso, que compõe um Iago visceral e insidioso que arrebata a peça desde a primeira fala. A ajudar a este domínio - intelectual acima de tudo, pois Iago não tem verdadeiros adversários - está a encenação, que opta pelo despojamento e por figurinos atemporais. Percebe-se a ideia de Nuno M. Cardoso quando refere Otelo como um "ringue frio, da palavra", mas a opção pelo mínimo resulta quando emergem grandes intérpretes, e neste caso emerge apenas Nuno Cardoso - e o seu diabólico Iago.

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segunda-feira, janeiro 15, 2007

Conta-me História

"Aviões alugados pela CIA passaram pela Base das Lajes e outros aeroportos nacionais? Obviamente que sim, como eventualmente todos os dias passam por muitos países europeus. Levavam prisioneiros para Guantánamo ou outros locais? Vá lá saber-se, mas olhar e analisar a História em retrospectiva é sempre um exercício ridículo e pura perda de tempo e dinheiro."

Já não lia esta inteligência fulgurante há algum tempo, mas vejo que nada mudou. Repare-se neste excerto do texto publicado hoje no DN por Luís Delgado. "Olhar e analisar a História em retrospectiva é sempre um exercício ridículo e pura perda de tempo e dinheiro".
O articulista não escreve “história” com caixa baixa, o que poderia significar que é sempre um exercício ridículo e pura perda de tempo e dinheiro analisar esta história: os voos da CIA em território português. Poderia perguntar-se porquê?, uma vez que poderão estar em causa questões de soberania e isso é evidentemente passível de ser olhado e analisado. Mas o mais extraordinário, aqui, é a utilização de caixa alta, "História", o que parece remeter para a ideia de que analisar a História, qualquer que seja, do Homem ou das civilizações, retrospectivamente, é um exercício ridículo e pura perda de tempo e dinheiro. O que despacha de uma penada a classe dos historiadores e a historiografia.
E nos faz começar a semana mais esclarecidos.

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quinta-feira, janeiro 11, 2007

Don´t mention the war



O Courrier Internacional destaca no seu primeiro número de 2007 a questão das novas ameaças à Liberdade de Expressão, reunindo uma série de textos de historiadores e intelectuais. Além de inúmeras pistas sobre os novos focos de censura (e outros que se mantêm ou se agravaram), apresenta-se a cronologia de eventos marcantes, como o assassinato de Theo Van Gogh, o episódio dos Cartoons, ou o discurso do Papa em Ratisbona. Referem-se também os recentes casos de autocensura em Espanha, onde se suprimiram, ou modificaram, elementos de festas populares que envolviam referências ao Islão; e a "contenção natalícia", nos EUA e na Inglaterra, por forma a evitar colidir com a sensibilidade dos não-cristãos. Da leitura dos textos ressalta a ideia de que o islamismo, assumindo-se como a mais estridente ameaça à liberdade de expressão, está longe de ser o único elemento de censura e intimidação às sociedades democráticas. Grupos de pressão e organizações comunitárias, ou a ideologia do politicamente correcto, são também factores de castração à liberdade de pensamento, ao humor, à criação artística ou ao simples comportamento dos cidadãos. É uma teia complexa que se expande à medida da globalização, e donde não há saídas fáceis nem soluções milagrosas. Podemos, no entanto, apegar-nos a essa ideia de Daniel Innerarity de que "somos seres humanos quando temos tanto amor à liberdade que estamos dispostos a pagar o preço de ter de viver com a insolência e o mau gosto". E com ela enfrentar o grande debate dos próximos anos.

Alguns highlights da edição do Courrier:

"A ordem das frases é essencial. Desde o caso Rushdie [1989], vimos com frequência esta sintaxe equívoca: «Evidentemente que defendo a sua liberdade de expressão, mas...». O princípio voltairiano [Discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo] coloca os termos no sentido correcto: primeiro a desaprovação, depois a solidariedade incondicional."

Timothy Garton Ash (publicado originalmente no The Guardian)

"O medo de falar: eis com o que somos confrontados. Há que recordar que os tabus não são todos imputáveis aos fundamentalistas muçulmanos (que não brincam no que toca à susceptibilidade) e começaram, sim, com a ideologia do politicamente correcto. Uma ideologia inspirada por um sentimento de respeito para com todos, mas que hoje impede, pelo menos nos EUA, de contar piadas."

Umberto Eco (publicado originalmente no L'Espresso)

"Apesar de todo o bem que possam ter feito, no passado, os grupos de pressão comunitários, a importância crescente dos dirigentes e personalidades não-eleitas que se arrogam o direito de decidir como os outros devem falar da sua comunidade étnica e religiosa têm um efeito pernicioso (...) Claro que as nossas sociedades democráticas precisam de ensinar a maioria a respeitar os direitos das minorias, mas hoje os emigrantes e os seus descendentes têm de compreender que a ofensa é o preço a pagar pela liberdade de expressão e pensamento."

Ian Buruma (publicado originalmente na The New Republic)

"O nosso mundo é constituído por grupos que se comportam como «concessionários de auto-estima». A susceptibilidade constitui o princípio identificador: «os nossos» são os que se agrupam em torno da mesma ofensa e que se mantêm unidos por uma irritação comum. Diz-me quem te incomoda, dir-te-ei quem és."

Daniel Innerarity (publicado originalmente no El País)

"Fazer o possível para evitar incomodar certas categorias da população é paternalista. Dá a entender que não estão à altura de se defenderem verbalmente. Penso que isso é dar carta branca aos renegados! Onde estariam os direitos das mulheres e dos homossexuais se as pessoas nunca tivessem transgredido os padrões?"

Eddy Terstall, dramaturgo holandês

"Não ousaria filmar A vida de Brian, dos Monty Python, sobre os muçulmanos."

Hans Teeuwen, cineasta holandês

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Ano Blanchett



Vi ontem o primeiro tomo da feliz sequência que irá assaltar os cinemas ao longo de 2007. E mesmo que Babel me tenha enfastiado (tal como Crash, parece sofrer da necessidade de nos falar ao coração, e apesar da sofisticação técnica e narrativa descamba numa lamechisse sonolenta), mesmo assim tinha Cate Blanchett (baleada e moribunda) e isso é razão suficiente para ir ao cinema. Este ano, aliás, não faltarão razões para ir ao cinema. Vejamos a lista: The Good German, de Steven Soderbergh; Notes on a Scandal, de Richard Eyre; I´m Not There, de Todd Haynes (onde interpreta... Bob Dylan); The Golden Age, de Shekhar Kapur; e The Curious Case of Benjamin Button, de David Fincher. E mais houvesse que eu ia a todos. Não costumo ter fixações por actrizes (só paixonetas fugazes) mas a beleza desta senhora realmente toca-me. A que distância de Scarlett e Dunst e outras ninfetas lambidas ainda sem pathos e gravidade. Há naquelas maçãs do rosto e na expressão solene e algo assustada aquilo que mais me provoca numa mulher: a sensação de que ia gostar dela. Da sua gentileza e distinção. Por mais que me enganasse - mas enganarmo-nos é condição para o encantamento. Esta senhora tem 37 anos e é australiana. E é para mim a actriz mais bela da actualidade.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

60 anos



Em mais de três anos de acompanhamento regular da blogosfera portuguesa não me lembro de ter visto um único post sobre David Bowie (haverá certamente, mas não nos blogs que visito), o que me provoca uma certa perplexidade. Estará fora de moda? Eu também não o ouço há algum tempo. Mas foi das minhas obsessões pop durante quatro ou cinco anos (período em que reuni a discografia que me interessava - desde o debute, em 1967, com David Bowie, até ao álbum de 1980, Scary Monsters). Durante pelo menos dez anos foi dos principais faróis da música popular, vogando por estilos como o glam, o prog-rock, a soul, o funk e a electrónica experimental, e criando personas para cada um deles (Ziggy Stardust ou Thin White Duke). Nesse caminho inspirou centenas de bandas e projectos e abriu inúmeros afluentes, com repercussões incalculáveis e ainda actuais. Depois eclipsou-se durante 15 anos (há muito quem defenda os seus trabalhos dos anos 1980, mas para mim, tirando um ou outro tema, é uma fase absolutamente pálida, pelo menos se comparada com a década de 70). Até que regressou com Outside (1995), álbum conceptual de sequência inacabada, que o recoloca na vanguarda da exploração de formas. Há um outro momento interessante em 1997, Earthling, mas depois confesso que me virei para outros lados. E não gostei de Reality (2003). Entre os álbuns de sempre elejo o incontornável Ziggy Stardust (1972); The Man Who Sold The World (1970); Hunky Dory (1971); e a trilogia de Berlim (Low; Heroes; Lodger), realizada entre os anos 1977 e 1979 em estreito conúbio artístico com Brian Eno. O senhor David Bowie faz hoje 60 anos e daqui seguem os mais sentidos votos de um Feliz Aniversário.

Adenda: O Sound + Vision não deixou passar a efeméride e promete um "Ano Bowie", onde se irão explorar "os seus discos e telediscos, as suas fotos e filmes, as suas capas e versões, os seus parceiros e universos ao seu redor."

O universo maduro

O Universo vai continuar a expandir-se para sempre.
Vai tornar-se um lugar rarefeito e frio (...)
Há-de chegar o dia em que estará tudo tão diluído
Que não haverá matéria para formar galáxias.
Estamos a ver o Universo na sua maturidade.

Versos melancólicos de um cosmólogo português do Instituto Superior Técnico, citado hoje no Público a propósito de uma reportagem sobre a matéria escura - o "esqueleto gravitacional" do Universo.

sexta-feira, dezembro 29, 2006

Presentes












Os melhores presentes são aqueles que oferecemos a nós próprios. Não há enganos. Não precisamos de sorrir e perguntar, muito acabrunhados, pela eventualidade remota de não nos servir e termos de trocar. Escolhemos à medida. E este ano não falhou: ofereci-me DVD's que vou usar sempre.

O primeiro é uma aula de cinema pelo olhar fascinado do cinéfilo e autor Martin Scorsese. (Serão duas aulas, aliás, mas ainda só pude assistir à primeira.) Uma Viagem pelo Cinema Americano, realizado para a televisão, em 1995, encontra-se no primeiro disco; enquanto na segunda parte desta bela oferta temos A Minha Viagem a Itália, de 1999. (Pelo meio, curiosamente, Scorsese andou a viajar pelo Tibete, donde nos trouxe o aborrecido Kundun.) A viagem pelo cinema americano é muito mais do que um mapa de referências e citações - é sobretudo uma jornada de afectos, em que o autor de Taxi Driver e Goodfellas nos toma pela mão e partilha o seu encantamento pelos filmes que o marcaram enquanto homem e enquanto artista. O resultado é uma verdadeira história do cinema americano, polvilhado de protagonistas como Griffith, Murnau, DeMille, Tourneur, Walsh, Minnelli ou John Ford. Desde o período clássico dos grandes estúdios até ao momento em que começa a filmar, em finais da década de 1960 (péríodo que se recusa a comentar, por uma questão de pudor). A rememoração organiza-se por géneros, como o western, o musical ou o filme de gangsters (e são-nos dadas genealogias de cada um deles); e pelas facetas de um realizador (enquanto "contrabandista" ou "iconoclasta", por exemplo). Contando com os depoimentos de colegas como Clint Eastwood, Francis Coppola, Brian De Palma, Billy Wilder ou Samuel Fuller, a viagem segue ao ritmo do admirador, detendo-se demoradamente em alguns filmes e analisando certas mudanças - o advento do som ou do formato CinemaScope -, ilustradas por cenas concretas que demonstram como os problemas se tornaram novas possibilidades. Pontuados pela voz juvenil de Scorsese, os excertos de dezenas de filmes são iluminados por comentários certeiros e reveladores que ampliam a capacidade de leitura. Sempre no tom de alguém que se comove e extasia sem perder o fio de um discurso original e penetrante. Chegamos ao fim e sabemos muito mais sobre cinema. (Senão, apenas dois aspectos: a legendagem é péssima e quem não entenda bem o inglês é enganado sucessivamente; e para aqueles que, como eu, não viram boa parte dos filmes referidos [encontram-se listados nos extras] e não imaginam ver tão cedo [não há cinemateca no Porto, etc. e tal], a experiência pode ser francamente frustrante.)

A segunda prenda do meu caro amigo foi o há muito desejado L'Atalante (1934), de Jean Vigo, o malogrado francês que não chegou a ver a estreia da sua primeira (e única) longa-metragem. Com 29 anos, sucumbiu à septicemia, tendo visto apenas a primeira montagem da sua obra-prima. Era filme que eu perseguia desde a leitura de um texto de Bénard da Costa, no Independente, incluído na série Os Filmes da Minha Vida. No seu estilo de deslumbramento, o grande cinéfilo chamava a atenção para uma cena em particular, em que Jean (Jean Dasté) enfia a cabeça num balde, e depois mergulha no rio, procurando ver a imagem da mulher amada, Juliette (Dita Parlo). Esta dissera-lhe que dentro de água a encontraria sempre. Visto o filme, não consigo destacar esse momento ou qualquer outro. Tudo me parece de uma relojoaria antiga, inimitável. Destaco o filme inteiro como uma jóia, onde se conta a história de um amor subitamente abalado e o desespero de dois amantes. Onde há um desejo físico pungente, em que a sugestão é ensurdecedora e ultrapassa em muito a exposição às escâncaras do cinema actual. É um trabalho de minúcia, em que cada cena parece destinada a gravar-se na memória do mundo. Como se não pudesse haver cinema sem recordar A Atalante.

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